Novas regras da mobilidade elétrica dividem setor quanto ao efeito nos preços e concorrência
Avaliação das empresas face à proposta para um novo regime da mobilidade elétrica diverge acentuadamente. Parte acusa efeito negativo nos preços e concorrência, outros apontam sobretudo benefícios.
O Novo Regime Jurídico de Mobilidade Elétrica está em suspenso desde a conclusão da consulta pública, que terminou há mais de dois meses. E os intervenientes do setor, ouvidos pelo ECO/Capital Verde, dividem-se na avaliação que fazem do documento preliminar: embora a permissão de autoconsumo nos pontos de carregamento seja um ponto positivo consensual, assim como a disponibilização de terminais de pagamento automático, as previsões dos efeitos nos preços, na concorrência e no crescimento da rede são antagónicas.
O objetivo do novo regime é, de acordo com a introdução da consulta pública, “dar à mobilidade elétrica um novo impulso para responder aos novos desafios do mercado e dos seus consumidores, que em muito se alteraram nos últimos 15 anos em Portugal e em todo o mundo”.
Para Ricardo Pacheco, responsável em Portugal da Iberdrola Bp pulse, “a mudança é claramente positiva“. O mesmo entende José Maria Sacadura, cofundador e diretor geral da Powerdot. Ambas as empresas têm o papel de operadores de pontos de carregamento, sendo responsáveis por instalar, operar e manter postos de carregamento. No entanto, com o novo regime, a Powerdot explica que terá de adaptar alguns dos seus sistemas e processos, nomeadamente para responder à gestão direta da venda de energia. Algo que já faz noutros mercados.
Já Daniela Simões, CEO e cofundadora da Miio, reconhece o esforço “para simplificar e liberalizar”, mas identifica “preocupações relevantes“, defendendo “mecanismos sólidos de regulação e coordenação” a acompanhar as mudanças. “Sem estas salvaguardas, corremos o risco de comprometer o progresso alcançado até agora na construção de uma mobilidade elétrica acessível, funcional e verdadeiramente centrada no utilizador”, alerta.
A Miio atua como facilitador entre os utilizadores de veículos elétricos e os operadores de pontos de carregamento, disponibilizado uma plataforma que integra informações em tempo real sobre localização, disponibilidade e preços dos postos, além de permitir o pagamento e a gestão centralizada de carregamentos.
Esta última posição é acompanhada por Ricardo Soares, diretor-geral da Go.Charge, que considera que a proposta, na forma atual, “apresenta mais riscos do que benefícios” e que “deve ser alvo de uma revisão profunda” para não levar a recuos na evolução da mobilidade elétrica. Esta empresa opera uma plataforma digital com o objetivo de facilitar os carregamentos, e oferece soluções que vão desde a instalação e operação de postos até à gestão de energia e frotas.
Na resposta à consulta pública, a UVE – Associação de Utilizadores de Veículos Elétricos afirma que “a atual proposta é uma boa iniciativa, com pontos positivos e importantes para a maturação da mobilidade elétrica em Portugal”, mas “necessita de várias melhorias antes de ser publicada”. Toma o novo regime como “um modelo diferente que restringe escolhas e retira opções ao utilizador“, acusando que “a direção deste documento parece querer voltar ao ponto de partida”.
Há alguns pontos consensualmente positivos. Um deles é o facto de passar a ser possível vender nos postos energia produzida localmente, através de soluções de autoconsumo, “o que incentiva o uso de fontes renováveis“, realça Ricardo Pacheco. Ao mesmo tempo, vai permitir que seja adicionada a possibilidade de carregamento bidirecional, isto é: quando o sistema precisar, o veículo elétrico pode “emprestar” a sua energia à rede.
Outro dos pontos mais apreciados é a disponibilização nos pontos de carregamento elétrico de meios de pagamento eletrónico alternativos, como o QR Code ou o cartão bancário. Desta forma, qualquer condutor pode usar os postos sem ter um contrato com uma empresa.
Um dos pontos que mais causa discórdia é a eliminação da figura do comercializador de eletricidade para a mobilidade elétrica (CEME) e da gestão centralizada da rede de mobilidade elétrica em Portugal, até agora operada pela Entidade Gestora da Rede Mobilidade Elétrica (Mobi.E). Cria-se, em paralelo, a figura de Prestadores de Serviços de Mobilidade, que prestam serviços ao utilizador em troca de remuneração, incluindo a venda de serviços de carregamento elétrico. Os prestadores de serviços poderão estabelecer as suas próprias redes de pontos de carregamento, sem necessidade de ligação obrigatória a uma rede comum, lê-se no documento em consulta.
Na ótica da Iberdrola Bp Pulse, a integração de funções que até agora estavam separadas, de operador de postos de carregamento (OPC) e CEME, “torna o sistema mais eficiente e transparente”. A Powerdot acredita que esta iniciativa “simplifica toda a cadeia de valor, promovendo uma relação mais direta entre operador e utilizador“.
Atualmente, os operadores de postos de carregamento registam-se na Mobi.E, assim como os comercializadores, sendo que os segundos podem vender eletricidade em qualquer infraestrutura, independentemente do OPC que a gere. Na reformulação do regime, ao deixar de existir a figura de CEME, é o OPC que vende a energia, passando o CEME a ser unicamente um prestador de serviços de mobilidade (eMSP — Electric Mobility Service Provider), pelo que os utilizadores poderão realizar contratos com estes últimos (ou pagar através de TPA), mas os ex-CEME têm de chegar a acordo com os OPC para operarem na sua infraestrutura.
A primeira crítica, apontada pela Miio, prende-se com a possibilidade de se acabar por limitar os utilizadores que prefiram estar vinculados a um prestador de serviço único e queiram usar o respetivo cartão/aplicação, em vez de pagarem através dos terminais de multibanco nos postos. Isto, já que os OPC podem optar por não abrir a sua rede a todos os prestadores.
“A integração OPC/CEME e eventual fragmentação do mercado “poderá resultar em cálculos de rotas menos eficientes, maior risco de zonas sem cobertura e a necessidade de recorrer a várias aplicações para comparar opções de carregamento e preços”, assinala Daniela Simões. Deste modo, pode vir a ser necessário ter-se várias aplicações e cartões de cada rede caso o utilizador não queria pagar através de QR Codes ou TPA quando estes estiverem disponíveis. “Podemos estar a dar um passo para trás, assemelhando a nossa realidade com a de outros países“, indica.
As empresas, face ao novo modelo, podem ter de fornecer cartões de crédito ou débito a cada colaborador com veículo elétrico, para que estes não tenham o acesso à rede limitado, indica o diretor-geral da Go.Charge.
Em segundo lugar, “acresce o fim da faturação centralizada, que pode complicar a gestão de custos, sobretudo para empresas“, continua o diretor-geral da Go.Charge. No sistema atual, o CEME escolhido pela empresa consegue reunir todas as faturas relativas ao cliente e entregá-las num mesmo documento. O uso de TPA implica a recolha e processamento de múltiplas faturas. A eventual adesão a diferentes prestadores de serviço também acarreta maiores custos burocráticos.
Por fim, a Go.Charge e a Miio unem-se na preocupação relativa à concorrência. Atualmente, existem mais de 100 OPC e mais de 30 CEME. A Miio concede que a liberalização pode “abrir espaço para novas dinâmicas comerciais e maior flexibilidade na definição de preços”, mas assinala ” o risco de práticas desleais e de concentração do mercado em poucos operadores dominantes”, o que “poderia prejudicar a diversidade de ofertas, reduzir a inovação e, no longo prazo, comprometer a experiência do utilizador final”, entende. “Sem um modelo que assegure a coexistência de múltiplas ofertas comerciais num único ponto de carregamento, como acontece atualmente, não haverá verdadeira concorrência“, reforça Ricardo Soares, tendo em conta que não é tecnicamente viável instalar postos de diferentes operadores no mesmo local.
Pelo contrário, a Powerdot considera que a integração “terá um efeito positivo no que toca à concorrência, ao permitir que os operadores se diferenciem na qualidade do serviço, nos preços e nas soluções tecnológicas que oferecem”.
A mesma empresa concede ainda que, se não houver uma boa integração técnica entre os operadores de pontos de carregamento (OPC) e as aplicações de mobilidade elétrica (CEMEs), a experiência dos utilizadores poderá, em alguns casos, piorar, com dificuldades na autenticação ou no acesso às melhores tarifas. Para a Iberdrola Bp Pulse, o ponto mais negativo é a incerteza gerada pela necessidade de regulamentação complementar, já que algumas portarias ainda estão por definir.
Efeito no preço é uma incógnita
A Powerdot acredita que o novo modelo “não deverá trazer grandes alterações imediatas nos preços de carregamento”, e estes deverão manter-se “muito semelhantes aos atuais”. A grande diferença, assinala José Maria Sacadura, será na forma como esses preços são apresentados: “serão mais fáceis de entender, mais transparentes e acessíveis para os utilizadores“.
Isto porque os OPC vão ser obrigados a afixar de forma “clara, completa, adequada e visível”, nos respetivos pontos de carregamento, informação relativa ao preço aplicável e todas as suas componentes, nomeadamente o preço por quilowatt-hora (kWh), de modo a dar a conhecer aos utilizadores estes elementos antes de iniciarem uma sessão de carregamento, lê-se na proposta legislativa.
Contudo, as empresas que assinalam perigo para a concorrência são, naturalmente, as mesmas que apontam o risco de aumento de preços. A Miio concede que a liberalização do setor poderá incentivar a celebração de acordos bilaterais entre os ex-CEME e OPC, “promovendo ações comerciais mais agressivas e vantajosas para o utilizador final“. No entanto, assinala que a integração das figuras de CEME e OPC pode beneficiar operadores com maior capacidade de mercado, o que, a médio prazo, pode levar à concentração do setor e a práticas menos favoráveis para o utilizador. ” A simples introdução de terminais de pagamento por cartão não assegura concorrência nos preços; garante apenas mais uma forma de pagamento”, sublinha Ricardo Soares, da Go.Charge.
Crescimento da rede pode ser afetado
A Iberdrola Bp Pulse está otimista quanto ao efeito do novo regime na proliferação da rede de carregamento. ” Estas simplificações vão facilitar a instalação de novos pontos de carregamento, inclusive em zonas de menor densidade populacional, promovendo uma maior utilização de veículos elétricos e uma rede mais densa e coesa em todo o país”, vaticina Ricardo Pacheco.
“Se a confiança na rede for abalada — por problemas de acesso ou interoperabilidade —, arriscamos assistir a uma desaceleração no crescimento do setor“, afirma Ricardo Soares. A Miio sublinha igualmente a importância do acesso universal aos postos (roaming) para que a rede expanda, assim como a existência de um ecossistema previsível, estável e atrativo para o investimento.
O contexto de eleições tem afetado a capacidade de avançar a discussão do regulamento, que prevê desde já a criação de um regime transitório de dois anos “para salvaguardar uma transição sem disrupções” entre o regime centralizado e aquele que se segue. Contactado sobre os próximos passos, o ministério das Infraestruturas não se pronunciou até ao fecho deste artigo.
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