Numa entrevista realizada antes do que revelou o ministro das Finanças, João da Costa Pinto defende a existência de duas grandes entidades de supervisão.
Estamos na segunda parte da entrevista de João da Costa Pinto ao ECO em que falamos dos poderes dos bancos centrais, das alterações desejáveis ao modelo de supervisão bancária e da união bancária.
O atual presidente da Comissão de Auditoria do Banco de Portugal, que faz questão de sublinhar por diversas vezes que está a falar na qualidade de economista, propõe a arquitetura dos dois pilares para a supervisão, um modelo que chegou a ser discutido quando Fernando Teixeira dos Santos era ministro das Finanças já com o atual governador Carlos Costa. No dia em que decorreu a conversa, o ministro das Finanças ainda não tinha aberto o véu das propostas de alteração do modelo de supervisão apresentadas pelo grupo de trabalho liderado por Carlos Tavares, ex-presidente da CMVM.
João da Costa Pinto, com uma longa carreira ligada ao Banco de Portugal e ao sistema financeiro, admite que os bancos centrais estão a ficar com poderes excessivos. Critica ainda a união bancária, quer pela intervenção que está a ter nas soluções para os problemas dos bancos, quem pelo risco de criar “mercados bancários de primeira e de segunda” por não ter sido criado o fundo europeu de garantia de depósitos.
Na sua perspetiva, o modelo criado corresponde a dizer que os países são responsáveis pela proteção da estabilidade financeira mas não podem fazer o que for necessário para proteger os seus bancos. Têm de perguntar a Bruxelas e a Frankfurt.
Foi vice-governador numa altura em que o Banco de Portugal também entrou em rota de colisão com o Governo da altura de Cavaco Silva, com divergências nomeadamente em relação à política cambial e de taxas de juro. Viveu também momentos de conflito entre o Governo e o Banco de Portugal. Como é que compara esse momento de conflito, com o que atravessamos agora entre o Banco de Portugal e o Governo?
Nesse período regressei ao Banco de Portugal como administrador, para substituir o Dr. António Borges, que se tinha demitido, em divergência com o ministro das Finanças na altura, o professor Braga de Macedo. E o conflito que existiu na altura, pelo menos aquele que foi público, teve que ver com a política cambial e com a liberalização dos movimentos de capitais. Muito curiosamente, o ministro e o Governo achavam que se devia andar mais depressa na liberalização dos movimentos de capitais do que o Banco, que estava preocupado com a situação que o escudo enfrentava, sujeito a ataques. Quando entrei no banco, e assumi a tutela de toda a área ligada à política cambial e monetária, foi já no final desse conflito.
Tem a vantagem de poder comparar os conflitos que existem hoje com os que existiam na altura.
Não é por acaso que os países democráticos evoluíram para soluções em que os bancos centrais são independentes dos governos. Muitas vezes há conflitos de interesse, quer por causa dos tempos políticos, quer devido à condução das políticas públicas. A nível europeu, é legítimo que muita gente se interrogue se não se foi longe demais. Isto é, será que a independência dos bancos centrais deve ser tanta, tanta, tanta, que pode haver um afastamento, para além de certos limites, entre as posições de um governo democraticamente eleito e uma instituição que, sendo muito importante, não é conduzida por políticos? É conduzida por técnicos, por tecnocratas.
Devo dizer que tenho dificuldade em entender muitas das notícias que hoje vêm a público sobre braços de ferro entre o Governo e o Banco de Portugal. Porque estou convencido que tanto um ministro, seja ele qual for, como um governador, seja ele qual for, percebem que, para além dos aspetos de natureza pessoal, há as questões institucionais e o alto interesse do país. Estou convencido que muitas das dificuldades que são noticiadas são pontos de vistas distintos e legítimos, por avaliações de quem está a ver a situação do país a partir de janelas distintas. Estou convencido que vão ser encontradas soluções.
O facto de se ter desenhado o BCE à imagem do Bundesbank fez com que em alguns aspetos se tenha ido longe demais [na independência dos bancos centrais]
Levantou uma outra questão que começa a marcar a atualidade. A independência dos bancos centrais foi longe demais e está a entrar em conflito com as prioridades de governos eleitos?
Considero que, ao nível da Europa do euro, se foi longe demais. As decisões tomadas pelo BCE têm consequências de natureza política fortíssimas. Por exemplo, quando o BCE decide comprar dívida soberana ou decide deixar de comprar, isso tem implicações fortíssimas sobre as condições em que os países se financiam. E, portanto, tem consequências até de natureza política. O facto de se ter desenhado o BCE à imagem do Bundesbank fez com que em alguns aspetos se tenha ido longe demais. Porque o Bundesbank é o reflexo muito particular da história de um país traumatizado por uma história de natureza política — o que se passou em todo o século XX na Alemanha — das dificuldades nomeadamente de natureza monetária…
Mas está a criticar o facto de o BCE ter começado a aplicar medidas menos ortodoxas de política monetária, como a compra de dívida?
Pelo contrário. Penso que a coragem demonstrada pelo Draghi e a sua equipa salvou o euro e o próprio projeto europeu.
Veja-se o caso, para mim absurdo, da discussão sobre o aumento de capital da Caixa Geral de Depósitos, se é, ou não, ajuda pública. Governos democraticamente eleitos não podem decidir por dinheiros públicos num banco público.
Então foi importante o banco central ter independência?
Sem dúvida nenhuma que foi importante. Mas, por outro lado, deram-se passos que levantam problemas muito complexos. Por exemplo, a união bancária foi feita de tal maneira que colocou na mão de tecnocratas decisões que deviam estar nas mãos dos governos.
Veja-se o caso, para mim absurdo, da discussão sobre o aumento de capital da Caixa Geral de Depósitos, se é, ou não, ajuda pública. E mesmo não sendo ajuda pública, [a CGD] tem que submeter projetos de evolução futura a tecnocratas que estão em Bruxelas.
Ou seja, governos democraticamente eleitos não podem decidir por dinheiros públicos num banco público. Estão impedidos, sem ter luz verde de tecnocratas e sem aceitar condições que são impostas por quem está de fora e tem uma visão tecnocrática da situação dos mercados financeiros europeus.
O Mecanismo Único de Supervisão tem hoje um poder de intervenção excessivo, sobre a capacidade de governos democraticamente eleitos determinarem o futuro das suas instituições bancárias e do seu sistema financeiro.
Mas isso não é novidade. Há uma parte que resulta do mecanismo único de supervisão, mas há aí uma parte que está relacionada da Direção Geral europeia de Concorrência (DGComp), que é a avaliação de ajudas públicas. Não é verdade?
É. Mas é uma interpretação do conceito de ajudas públicas — que surgiu e bem para criar condições de concorrência e evitar situações de distorção da concorrência — , para casos que têm que ver com a estabilidade financeira de um país. Com valores fundamentais de que depende a própria democracia. A DGComp acabou por se arrogar de poderes que têm que ver com a própria capacidade de atuação de governos democraticamente eleitos. E isso depois tem reflexos na união bancária. Porque, também o Mecanismo Único de Supervisão tem hoje um poder de intervenção excessivo, sobre a capacidade de governos democraticamente eleitos determinarem o futuro das suas instituições bancárias e do seu sistema financeiro.
Falaremos mais adiante da união bancária. O Banco de Portugal também tem poderes a mais? Pensa que se deve alterar as competências e retirar, por exemplo, o poder de resolução de bancos?
A solução encontrada entre nós de localizar o mecanismo de resolução no Banco de Portugal foi má. A minha opinião não é de agora, é de sempre. E, repito, não estou a falar enquanto presidente do Conselho de Auditoria mas sim como economista. Como agora se reconhece, colocar o Fundo de Resolução numa ligação direta, quase exclusiva, no Banco de Portugal, ia criar conflitos de interesse.
Qual é o conflito de interesses que existe?
O Banco de Portugal tem responsabilidades de supervisão. Numa situação em que um banco é resolvido, o Banco de Portugal, como responsável máximo da gestão do Fundo de Resolução, é responsável, na prática, pela gestão do banco resolvido e, ao mesmo tempo, é o supervisor.
Há mais competências que considera que devem sair do Banco de Portugal?
Há uma questão de fundo que é o da arquitetura da nossa supervisão de toda a área financeira, seja ela do mercado bancário, segurador ou do mercado de capitais. Como sabe, há diferentes modelos. Eu pessoalmente, por exemplo, e sei que isto é controverso, sempre preferi uma solução tipo twin peaks [dois pilares].
Os mercados financeiros estão a desenvolver-se cada vez mais de forma integrada e rápida. E era bom que houvesse uma entidade única com capacidade para acompanhar, de forma coordenada, todos estes mercados, de capitais, bancários e seguradores. Com segmentos especializados, sem dúvida.
Por outro lado, há uma área extremamente importante, para além da supervisão prudencial, que é a de proteção dos interesses dos clientes, dos depositantes, dos clientes da banca, ou do mercado de capitais, dos investidores.
Existiria vantagem num modelo twin peaks, dois pilares, em que um era responsável por toda a supervisão prudencial e de regulação e outro teria a responsabilidade de acompanhamento da supervisão comportamental.
Sei que vai um bocado ao arrepio da nossa tradição. Sei que a implantação de uma arquitetura destas não deixa de ter a sua complexidade e teria de ser feita gradualmente. Mas confesso que sobre isso eu não sei nada. Sei o que veio a público, sei que houve um trabalho que terá sido desenvolvido pelo grupo de trabalho.
Existiria vantagem num modelo [de supervisão] twin peaks, dois pilares, em que um era responsável por toda a supervisão prudencial e de regulação e outro teria a responsabilidade de acompanhamento da supervisão comportamental.
É o grupo de trabalho liderado pelo Dr. Carlos Tavares
Admito que as conclusões desse grupo sejam agora submetidas a uma discussão alargada. Não sei, não conheço o que eles propõem.
Isso significaria tirar a supervisão quer prudencial quer comportamental do Banco de Portugal, criando duas novas entidades.
Não, de maneira nenhuma. Não necessariamente. Repare que a ligação entre o Banco de Portugal e a supervisão do mercado bancário é extremamente importante.
Mas alguma entidade tinha de acabar? Por exemplo a Comissão de Mercados dos Valores Imobiliários podia ter de acabar.
Não acabaria. Seria inserida numa arquitetura com uma coordenação que no sistema atual se tentou fazer. Há o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros [que integra o Banco de Portugal, a CMVM e a Autoridade de Supervisores de Seguros e Fundos de Pensões], mas que acabou por ser uma solução coxa na forma como foi organizado e como funcionou.
Voltemos ao tema das competências de Frankfurt e de Bruxelas em relação à banca. Pensa que a União Bancária como um todo trouxe mais problemas do que soluções?
A União Bancária foi uma resposta a uma crise que se abateu sobre os mercados bancários europeus, na sequência do problema da dívida soberana. Por razões de natureza política, uma das questões centrais dessa crise não pôde ser atacada, que é o problema do endividamento excessivo que uma série de economias que integram a Europa do Euro, infelizmente algumas das mais frágeis, que se alavancaram enormemente.
Só que, o avanço para a União Bancária pressupunha a mutualização de responsabilidades. A mesma razão que leva países como a Alemanha, e outros países credores, a não aceitar a discussão da dívida, também os leva a não aceitar qualquer tipo de mutualização de responsabilidades. Uma União Bancária a sério, a valer, equilibrada, tinha três pilares: o pilar da supervisão, o pilar da resolução e o pilar da proteção dos depósitos.
Vai haver mercados bancários de primeira e mercados bancários de segunda, em função do risco que os depositantes e os investidores avaliam dos diferentes mercados, das diferentes economias.
E o da proteção de depósitos é o que falta completar.
É o que falta porque significa uma mutualização de responsabilidades. Era a criação de um fundo europeu de proteção de depósitos, que está previsto, mas que atira para as calendas. O que cria um risco imenso, que ainda não está visível, porque vivemos um período puramente transitório. Mas se a situação dos mercados financeiros estabilizar, coloca-se um problema: vai haver mercados bancários de primeira e mercados bancários de segunda em função do risco que os depositantes e os investidores avaliam dos diferentes mercados, das diferentes economias. Num contexto de total liberdade de capitais, não havendo um mecanismo de proteção de depósitos único da Europa, mas mecanismos que dependem dos diversos países, o que é que impede que os maiores depositantes levem os seus depósitos para os mercados bancários que eles consideram de menor risco?
A Europa disse a cada país: “vocês são responsáveis pela proteção da vossa estabilidade financeira, incluindo os depositantes, mas nós não autorizamos que vocês façam o que acharem necessário para proteger os vossos bancos, aí têm que vir perguntar como é que é, nós é que dizemos”.
Isso já está a acontecer?
Não tenho dúvida que vai acontecendo. Não sei até que ponto é que estes milhões de que agora se falam que saíram [caso dos offshores], pelo menos alguns, não terão tido esse tipo de motivações. Mas senão teve, o normal é que tenha. A Europa disse a cada país: “vocês são responsáveis pela proteção da vossa estabilidade financeira, incluindo os depositantes, mas nós não autorizamos que vocês façam o que acharem necessário para proteger os vossos bancos, aí têm que vir perguntar como é que é, nós é que dizemos”.
Ou seja, não podemos escolher o menu, mas pagamos a fatura, é esse o modelo?
É. E é insustentável. É por isso que a Europa entrou na vertigem e nos bloqueamentos que agora levam ao que para mim era impensável. Que é os principais países começarem a admitir uma Europa a várias velocidades. E podem os países dizer que estão no pelotão da frente ou não? Quem vai determinar quem está no pelotão da frente são os mercados e os investidores, esses é que vão determinar. Ou a Europa se move e enfrenta os problemas que não tem querido enfrentar até agora, nomeadamente formas de mutualização de dívida, a criação de um fundo de estabilidade financeira dotado a valer, mecanismos europeus de proteção, etc. Ou vai colocar-se um outro problema a curto prazo, que é o problema do próprio Euro.
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Costa Pinto defende modelo de supervisão de dois pilares, o twin peaks
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