Fim da fixação de tarifas da água pelo regulador foi “muito prejudicial para o setor”

Numa altura em que ainda existe uma "disparidade enorme" dos preços da água no país, o regulador aponta que "seria mais fácil se a ERSAR" voltasse a ter a competência de fixar as tarifas.

Cerca de um quarto da água que entra na rede de abastecimento, perde-se, e embora estejam em curso investimentos para a reabilitação das infraestruturas, ainda há um longo caminho a percorrer. Isto, num país que gere este recurso “a duas velocidades“, aponta a presidente da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), em entrevista ao Capital Verde.

Vera Eiró reitera que as tarifas cobradas pelos serviços de abastecimento de água continuam a ser insuficientes para cobrir as necessidades de um setor que precisará de um investimento de 5,5 mil milhões de euros até 2030, de acordo com o Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais 2030 (PENSAARP 2030)

Face a esta realidade, a presidente do regulador apela aos municípios e entidades gestoras para que haja um aumento dos preços, de forma a combater a “disparidade enorme de tarifários”, já que à ESRSAR foi retirada a competência os fixar, em 2021. “Foi uma alteração legislativa muito prejudicial para o setor”, aponta.

As redes de abastecimento registam perdas de água significativas. As soluções estão identificadas, estão em curso investimentos, e existem bons casos de municípios que conseguiram corrigir estes desperdícios. No entanto, esta realidade ainda não é transversal no país. O que falta fazer?

É preciso tornar prioritário. Isso significa que tem que haver, do lado das entidades gestoras, uma forma de financiarem este combate às perdas. As tarifas têm que ser adequadas. Não podem ser baixas demais porque senão não há investimento na rede.

Temos um país a duas velocidades. Temos entidades gestoras que são campeões no combate às perdas, no combate à água não faturada, e que têm uma operação altamente eficiente. E depois temos outras que não. Nas regiões onde há muitas perdas, estas estão relacionadas com falta de conhecimento das infraestruturas que são geridas, falta de cadastro, falta de capacidade técnica para monitorizar e identificar onde é que estão as grandes perdas. As redes são invisíveis, estão enterradas e é difícil torná-las prioritárias. E quando há ruturas, às vezes é tarde demais.

Uma das coisas que fazemos é validar os dados de 230 entidades que nos reportam anualmente: dados sobre as perdas, a água não faturada, o conhecimento cadastral, a qualidade da água, medidores, entre outros. Depois, auditamos esses dados. Em mais de 1.000 entradas, a ERSAR tem de reavaliar e mudar os dados que nos são fornecidos pelas entidades. Estamos a falar de uma diferença entre o que é reportado e o que verificamos na prática de 300 milhões euros. Com estas auditorias, percebemos que há entidades gestoras com dificuldades muito grandes do ponto de vista técnico, de meios, com tarifas muito baixas e que também não lhes permitem fazer face aos desafios que este setor tem neste momento.

Faz sentido agregar estas entidades mais vulneráveis e com menos capacidade todas numa só?

Claro. Uma das estratégias da ERSAR tem a ver com a agregação dos municípios. Não é só agregar as que têm menor capacidade. É agregar as que têm menor e as que têm maior capacidade numa lógica de município âncora. Há situações onde realmente não é economicamente eficiente que haja agregação e há outras em que claramente é, e tem sido um caminho.

A agregação tem um desafio muito grande do ponto de vista de governança e político. Existem oito agregações que foram constituídas pós 2016 e 2017, e agora estamos numa fase em que temos de cuidar das que existem. É preciso solidariedade e confiança, que são bens muito frágeis, e é preciso ajudar estas agregações a manterem-se. É realmente prioritário constitui-las, mas eu diria que é duplamente prioritário ajudar as que se constituíram a manterem-se.

As tarifas têm que ser adequadas. Não podem ser baixas demais porque senão não há investimento na rede.

Vera Eiró, presidente da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR)

E existe vontade dos municípios para se juntarem?

Nalguns casos sim, noutros não. Acho que há potencial para haver mais agregações, e nós temos estado a trabalhar também sobre isso. Do ponto de vista teórico, ninguém discute o modelo, depois na prática é preciso mesmo que os autarcas criem confiança e que confiem uns nos outros.

Aplicar contraordenações aos municípios que registam maiores perdas pode ser uma solução?

Não sei se será essa a via. Eu prefiro os incentivos, mas só se ajuda quem se quer ajudar. O que costumamos dizer, e sublinhamos isso a propósito dos fundos europeus que podem ser usados para combater as perdas, é que o nível tarifário tem que ser adequado aos custos que se tem, para não se financiar um buraco negro. Este setor não vai evoluir e fazer o investimento de que necessita apenas assente em financiamento público e subsidiação, de todo. Aliás, o plano estratégico [PENSAARP 2030] foi agora publicado e as necessidades de financiamento vão ultrapassar muitíssimo os subsídios europeus que podemos ter.

As concessões privadas tendem a ser aquelas com menores perdas de água, de acordo com os dados da ERSAR. A solução passa por fomentar um maior número de concessões de sistemas privados?

Nós incentivamos aquilo a que chamamos empresarialização. Os modelos empresariais, sejam eles públicos, sejam eles privados, são modelos que são mais eficientes e têm menores perdas reais e têm menor nível de água não faturada. Não é tanto se é privado ou se é público. Somos agnósticos quanto a isto. O privado permite que haja um investidor no setor para além do investidor público e isso é favorável nalgumas situações. O que nós não somos agnósticos é quanto à natureza empresarial dos serviços. Portanto, cenário ideal: agregações sempre que possível, com escala que seja adequada. Fora deste cenário ideal — mas num cenário que ainda assim é bom — é de, pelo menos nos casos de gestão direta, e com mais de 20.000 clientes, que os serviços dos municípios se possam empresarializar, porque isso protege os serviços.

Vera Eiró, presidente da ERSAR, em entrevista ao ECO/Capital Verde - 15FEV24
Vera Eiró, presidente da ERSAR, em entrevista ao ECO/Capital Verde Hugo Amaral/ECO

O regulador prevê um acréscimo das tarifas médias domésticas entre 2,45 e 3,28 euros por metro cúbico, no PENSAARP 2030. Este valor, sendo adotado, já seria suficiente para cobrir as necessidades que o setor tem?

Estão todos de acordo relativamente a esse tema. O investimento que está pensado no PENSAARP para fazer face aos desafios que nós temos até 2030 é de 5,5 mil milhões de euros. Para fazer face a esse investimento, é realmente necessário que o preço dos serviços acomode a possibilidade de fazer este investimento nos serviços, e isso faz-se através de um aumento tarifário. O aumento tarifário que está aqui em causa é algo que não põe em causa a acessibilidade económica ao serviço. As contas estão feitas. Claro que acessibilidade económica é medida em termos de média e portanto, para as situações que se afastam da média, há tarifários sociais que têm e que devem ser aplicados.

Há uma disparidade enorme de tarifários. Por exemplo, ainda há pouco vi que num município a tarifa máxima de 10 metros cúbicos (m3) de água era de 22 euros por mês e, noutro município 10 m3 custavam 3 euros por mês. O que se está a afastar mais da cobertura de gastos é o segundo, não é o primeiro. O segundo é que é baixo demais. É impossível fazer face aos desafios com tarifas nesta linha. E não é só uma questão de fazer face aos desafios, é mesmo a valorização do bem.

Nas situações em que os municípios praticam tarifas mais baixas, faria sentido à ERSAR ter competências de impor as tarifas que recomenda?

Fazia todo o sentido. Já tivemos a competência para emitir instruções vinculativas, mas foi-nos retirada na Lei do Orçamento do Estado de 2021.

Já durante o seu mandato.

Foi no início. Iniciei funções a 1 de janeiro de 2021 e recebi uma lei do Orçamento do Estado para aquele ano que tinha esta alteração aos estatutos da ERSAR. Estou no terceiro ano de mandato, e posso dizer que foi uma alteração legislativa muito prejudicial para o setor porque o facto de a ERSAR poder intervir nesta matéria é algo que poderia ajudar muitos municípios. Não é retirar competências aos municípios, é permitir que eles possam tomar a decisão certa. Do ponto de vista político, estas decisões são muito difíceis de serem tomadas, seja porque enfrentam dificuldades na Câmara Municipal ou na Assembleia Municipal.

Seria mais fácil para todos se ERSAR tivesse essa competência. Estamos preparados para a exercer se houver uma alteração legislativa nesse sentido. Mesmo neste contexto de seca, seria bastante mais fácil para todos os municípios que estão de acordo se estas medidas fossem uma determinação da entidade reguladora.

O PENSAARP tem metas para 2030, mas só foi aprovado agora. Existe tempo suficiente para executar as metas e os objetivos que estão definidos?

Alguns sim, outros vai demorar mais tempo. Mas mais do que quanto tempo é que demora a chegar lá, é preciso começarmos a tentar chegar lá. É um bocado como o nosso ilustre caso na natação. Primeiro treinamos e depois ganhamos o Mundial. E é isso que nós temos que fazer no setor, temos que começar já a desenvolver os passos necessários para depois alcançar aquele resultado que está previsto para diferentes áreas.

Às vezes as pessoas queixam-se. Dizem que há muitos planos, mas os planos têm sido importantíssimos neste setor. Têm marcado ritmo, têm dado orientação. Agora é preciso um encaixe entre a parte técnica, política e a de governança, que têm que desenvolver aquelas medidas.

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