“Não acho que Portugal seja um país de despedimentos, de uma forma geral”

Em entrevista à Advocatus, a advogada Joana de Sá fala sobre teletrabalho, IA nas empresas, transparência salarial, direito a desligar e sobre o estatuto dos trabalhadores de plataformas digitais.

Joana de Sá é sócia coordenadora da área de laboral da PRA-Raposo, Sá Miranda & Associados. Integra o Informal Working Group on Developments in the Business and Human Rights Agenda, incluindo o UNGP ten year plus project (UN Working Group on Business and Human Rights).

Em entrevista à Advocatus/ECO, fala sobre teletrabalho, IA nas empresas, transparência salarial, agenda do trabalho digno, direito a desligar e sobre o estatuto dos trabalhadores de plataformas digitais.

A nossa legislação laboral compatibiliza-se com um país de salários altos e de pleno emprego e emprego estável?

Pensar no marcado de trabalho nacional, não é, infelizmente, o mesmo que pensar em salários altos e efetivo pleno emprego. Em Portugal, a legislação laboral, garante forte proteção aos trabalhadores, incluindo limitação a despedimentos sem justa, sancionado qualquer forma ilícita de despedimento, cuida com detalhe das restantes condições de trabalho como sejam: as condições de acesso ao emprego, a parte retributiva, o tema do descanso, entre outros. No entanto, quer o padrão salarial quer a taxa de emprego dependem de múltiplos fatores económicos e não apenas da legislação.

Que condições precisam de existir para que tal seja uma realidade?

Na minha opinião, para que possamos pagar salários elevados e ter pleno emprego, é essencial que termos um crescimento económico sustentável que impulsione a criação de empregos. Assim como é fundamental o investimento em educação e formação para aumentar a qualificação da força de trabalho. As empresas são o motor da economia. Estimular o consumo e ter um sistema que promova o investimento são fundamentais para que possamos ter um ambiente empresarial favorável, capaz de promover a competitividade e a inovação.

Joana de Sá, sócia e coordenadora de Laboral da PRAHugo Amaral/ECO

E o que precisa de mudar?

Destaco: Reformas no sistema educativo para alinhar as competências dos trabalhadores com as necessidades do mercado.; Incentivos ao investimento estrangeiro e nacional para estimular a economia, e mesmo a Flexibilização responsável da legislação laboral, não descorando a proteção dos trabalhadores, mas procurando equilibrar os direitos destes com a necessidade das empresas poderem ser cada vez mais competitivas e ajustadas às constates mudanças e desafios.​

Fala-se de falta de simplificação no acesso à justiça. É uma realidade nos tribunais de trabalho?

A realidade dos Tribunais do Trabalho, não é muito diferente dos demais foros em Portugal. Os Tribunais em particular, e o sistema judicial em geral, enfrentam desafios relacionados com a morosidade processual e complexidade dos procedimentos, o que pode dificultar o acesso célere à justiça, também no âmbito laboral.

A lei portuguesa regulamenta adequadamente o estatuto dos trabalhadores de plataformas digitais?

Recentemente, Portugal implementou uma presunção de laboralidade para os trabalhadores de plataformas digitais, estabelecendo critérios que, quando verificados, fazem presumir a existência de uma relação de trabalho subordinado. Esta medida visa proporcionar maior proteção a estes trabalhadores, embora a sua aplicação prática ainda esteja em desenvolvimento. Várias decisões recentes dos tribunais nacionais, têm versado sobre esta questão e reconhecido a existência de relação laboral a trabalhadores de plataformas digitais.

Quais as novas condições para considerar um despedimento por extinção do posto de trabalho válido? Usa-se e abusa-se deste mecanismo nas empresas portuguesas?

O despedimento por extinção do posto de trabalho deve basear-se em razões de mercado, estruturais ou tecnológicas e cumprir critérios específicos, como a inexistência de funções compatíveis na empresa para o trabalhador que está a ser visado. Embora seja um mecanismo legal, existem preocupações sobre a sua utilização indevida por algumas empresas para reduzir o seu número de trabalhadores. Nesta linha de preocupação, o legislador veio, na última alteração ao Código do Trabalho, introduzir algumas disposições que visam dissuadir a entidade empregadora de promover esta modalidade de despedimento de forma ilícita. Refiro-me, em concreto, ao “novo” artigo (338.º-A) daquele diploma legal que, sob a epígrafe “Proibição de recurso à terceirização de serviços”, vem expressamente proibir os empregadores de contratar serviços externos (outsourcing) com a finalidade de suprir necessidades antes asseguradas por trabalhador cujo contrato de trabalho tenha cessado nos 12 meses anteriores, através dos mecanismos de despedimento coletivo ou extinção do posto de trabalho. Prevê ainda o referido preceito que a violação de tal imposição constitui uma contraordenação muito grave imputável à empresa contratante.

O direito a desligar no teletrabalho é um direito efetivo? Há sanções por incumprimento, na prática?

A opção legislativa do legislador nacional, foi a de se focar no ‘dever’ de abstenção de contacto e não no ‘direito’ ao desligamento. Assim, a tónica está do lado das organizações e não nos trabalhadores. A lei não faz distinção deste dever de abstenção em função de o trabalho ser presencial ou remoto, e considera “ação discriminatória” qualquer tratamento menos favorável dado a trabalhador, designadamente em matéria de condições de trabalho e de progressão na carreira, pelo facto de exercer o direito ao período de descanso. A legislação estabelece como uma contraordenação grave o não cumprimento desse dever da parte do empregador, podendo ser objeto de coima.

Fala-se numa tendência de recuo no teletrabalho. É real ou apenas mais uma perceção?

Acompanhamos empresas de vários setores de atividade e constatamos que esta realidade não se comporta da mesma maneira em todos eles. Há setores em que o teletrabalho se ajusta perfeitamente à dinâmica da empresa, e outros há em que o mesmo foi quase que “forçado” acontecer fruto das restrições motivadas pela pandemia Covid19. Efetivamente, não sinto um recuo ao nível do número de trabalhadores em teletrabalho, mas sim, uma tendência acentuada para regimes de trabalho híbrido (conjunção de trabalho presencial com trabalho remoto). Efetivamente existiu um momento, pós pandemia, em que, quer empresas, quer trabalhadores, viveram um período de “ajuste”. Sentiu-se, efetivamente, alguma resistência por parte de alguns trabalhadores no regresso ao trabalho presencial, mas penso que os modelos híbridos, foram um instrumento muito útil para ultrapassar tais resistências e continuar a possibilitar ao trabalhador o work-life balance que o trabalho remoto claramente propicia.

Portugal é um país de despedimento por justa causa, despedimento coletivo ou de extinção do posto de trabalho?

Não acho que Portugal seja um país de despedimentos, de uma forma geral. A legislação laboral nacional, estabelece, de forma muito concreta, quais os mecanismos para que a empresa possa por termo a um contrato de trabalho. No que toca aos contratos por tempo indeterminado, ou sem termo, a lei é clara, e a sua cessação quando tem a iniciativa do empregador só pode ocorrer por meio despedimento por justa causa (através da instauração de um processo disciplinar), despedimento coletivo e por extinção do posto de trabalho. A escolha do mecanismo depende das circunstâncias específicas enfrentadas pela empresa. Tipicamente, os processos de despedimento coletivo, pela sua abrangência, causam sempre um maior impacto na estrutura e nos envolvidos.

É essencial que as empresas façam um caminho para garantir a precisão e atualização dos dados salariais, a existência de políticas remuneratórias transparentes e a implementação de sistemas eficazes de avaliação de funções”

As indemnizações devidas em caso de despedimento sem justa causa são justas e adequadas, em Portugal?

Entendo que sim.

Transparência salarial: a que empresas impacta mais?

Não consigo, a esta data, destacar um setor de atividade que em particular esteja a sofrer mais impacto com este tema.

Quais os desafios de desenho e de implementação?

Na verdade, este não é um processo simples. Não o é na sua conceção, nem tão pouco na dinâmica de “reporte” estabelecida pela lei. Inúmeras empresas estão atualmente a braços com notificações da entidade inspetiva nacional, para apresentar o seu plano de avaliação de diferenças remuneratórias, por referências aos dados oficiais anualmente divulgados. A verdade é que estes processos de análise assentam na avaliação das componentes das funções, com base em critérios objetivos, de forma a excluir qualquer possibilidade de discriminação em razão do sexo. É essencial que as empresas façam um caminho para garantir a precisão e atualização dos dados salariais, a existência de políticas remuneratórias transparentes e a implementação de sistemas eficazes de avaliação de funções.

Joana de Sá, sócia e coordenadora de Laboral da PRAHugo Amaral/ECO

Apreciação da lei: ficou no sítio certo?

O ordenamento juslaboral português proíbe a discriminação salarial injustificada e impõe algumas regras de transparência remuneratória (nomeadamente, pela Lei n.º 60/2018 e artigo 23.º e seguintes do Código do trabalho). Espera-se que com a transposição da a Diretiva (UE) 2023/970, que reforça a aplicação do princípio da igualdade de remuneração por trabalho igual ou de valor igual entre homens e mulheres através de transparência remuneratória, seja transposta para o nosso ordenamento jurídico (data limite 7 de junho de 2026), o tema passe a ter um tratamento mais abrangente e eficaz.

Que medidas concretas devem as empresas adotar para garantir transparência salarial: Relatórios anuais de remunerações (para empresas com +100 trabalhadores) e uma avaliação de categorias sob critérios objetivos, por exemplo?

As empresas devem assegurar a existência de uma Política Remuneratória Transparente, aplicável aos seus trabalhadores, de forma a evitar que existam ou se perpetuem casos de discriminação remuneratória entre homens e mulheres. A Política Remuneratória deve ser construída com base na avaliação das componentes das funções desempenhadas pelos trabalhadores, com base em critérios objetivos (designadamente, mérito, produtividade, assiduidade ou antiguidade), comuns a homens e mulheres. Em caso de alegação de discriminação remuneratória, cabe à empresa demonstrar que possui uma Política Remuneratória, nomeadamente no que respeita à retribuição de quem alega estar a ser discriminado face à retribuição do trabalhador ou trabalhadores em relação a quem se considere discriminado.

Efetivamente, não sinto um recuo ao nível do número de trabalhadores em teletrabalho, mas sim, uma tendência acentuada para regimes de trabalho híbrido (conjunção de trabalho presencial com trabalho remoto). Efetivamente existiu um momento, pós pandemia, em que, quer empresas, quer trabalhadores, viveram um período de “ajuste””

As sanções para empresas que não cumpram as regras de transparência são suficientes e proporcionais?

Penso que sim.

Como pode um trabalhador contestar uma diferença salarial discriminatória?

Qualquer trabalhador ou representante sindical poderá requerer à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) parecer sobre a existência de discriminação remuneratória em razão do sexo por trabalho igual ou de igual valor. O pedido de parecer tem de ser apresentado por escrito e fundamentar a alegação de discriminação remuneratória, indicando o trabalhador ou trabalhadores do outro sexo em relação a quem se considera existir discriminação.

A já mencionada Diretiva (UE) 2023/970, prevê uma inversão do ónus da prova: quando um trabalhador que se considere lesado pelo incumprimento do princípio da igualdade de remuneração apresentar, junto de uma autoridade competente ou de um tribunal nacional, elementos de facto constitutivos da presunção de discriminação direta ou indireta, incumba à parte demandada provar que não houve discriminação, direta ou indireta, em matéria de remuneração. Assim, se o trabalhador alegar que há discriminação salarial, caberá ao empregador a prova de que não há.

Quais os maiores obstáculos à implementação efetiva da transparência salarial em Portugal?

Não só em Portugal, mas no Mundo, este é um problema de mudança efetiva de mentalidade. A esta data, aguardamos que a Diretiva (UE) 2023/970, que reforça a aplicação do princípio da igualdade de remuneração por trabalho igual ou de valor igual entre homens e mulheres através de transparência remuneratória, seja transposta para o nosso ordenamento jurídico (data limite 7 de junho de 2026). Esta diretiva surge, precisamente, para reforçar a aplicação do princípio da igualdade de remuneração por trabalho igual ou de valor igual entre homens e mulheres através de transparência remuneratória e mecanismos que garantam a sua aplicação. Introduz algumas importantes medidas como por exemplo, antes da contratação: i. Prestar aos candidatos a emprego informações sobre a remuneração inicial ou o seu intervalo, com base em critérios objetivos e neutro em termos de género, para o posto de trabalho a que se candidata, e informar sobre as disposições pertinentes do Contrato Coletivo de Trabalho aplicado em relação ao posto de trabalho a que se candidata; ii. abster-se de inquirir os candidatos sobre o historial das remunerações auferidas nas suas relações laborais atuais ou anteriores; iii. assegurar-se que os anúncios de oferta de emprego e as designações dos cargos sejam neutros em termos de género, e que os processos de recrutamento sejam conduzidos de forma não discriminatória, a fim de não comprometer o direito a remuneração igual ou de valor igual. A Diretiva em análise, introduz, ainda, algumas obrigações relevantes para a entidade empregadora como, a de assegurar o fácil acesso dos trabalhadores aos critérios utilizados para determinar: i. a remuneração; ii. os níveis de remuneração; e a iii. a progressão da remuneração.

Penso que o que continuará a marcar o mercado laboral será a escassez de mão de obra em diversos setores (como o das tecnologias, saúde, construção, entre outros), bem assim como a inevitável mudança provocada pela inteligência artificial. Ao nível de novidades legislativas, ouvimos no final do ano transato, o Governo anunciar a sua vontade de, na minha opinião de forma muito oportuno, revisitar regras do teletrabalho, do banco de horas e do período experimental”

Já começámos a sentir ímpeto de reestruturação das empresas por substituição do trabalho por IA?

A adoção de IA entre as empresas portuguesas tem crescido significativamente e isso reflete-se, inevitavelmente, na necessidade de ajustar suas estruturas, incluindo ao nível dos recursos humanos. Este tema, faz-me regressar a um tópico, já acima abordado, que é o da e necessidade urgente de se olhar com muita atenção para o sistema educativo e de qualificação profissional de forma a alinhá-lo com as competências dos trabalhadores em face das necessidades de um mercado repleto de desafios e em constante evolução.

Quais as novidades legislativas e no mercado laboral a marcar a área Laboral em 2025?

Penso que o que continuará a marcar o mercado laboral será a escassez de mão de obra em diversos setores (como o das tecnologias, saúde, construção, entre outros), bem assim como a inevitável mudança provocada pela inteligência artificial. Ao nível de novidades legislativas, ouvimos no final do ano transato, o Governo anunciar a sua vontade de, na minha opinião de forma muito oportuno, revisitar regras do teletrabalho, do banco de horas e do período experimental. De realçar que, para 2025, estarão previstas alterações ao Código do Trabalho em Portugal, nomeadamente para transpor diretivas comunitárias.​ Uma das principais mudanças é a transposição da Diretiva (UE) 2022/2041, relativa a salários mínimos adequados na União Europeia, e a outra fruto do previsto na Diretiva (UE) 2023/970, que reforça a aplicação do princípio da igualdade de remuneração por trabalho igual ou de valor igual entre homens e mulheres através de transparência remuneratória, deverá ser transposta até 7 de junho de 2026. Embora o prazo de transposição ainda não tenha sido atingido, acredito que o processo legislativo para a sua implementação se inicie em 2025. ​

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