“Não se pretende que a arbitragem rivalize com o poder dos tribunais”, diz Nuno Pena

A dias da conferência "Mitos sobre a arbitragem", da CMS Rui Pena & Arnaut, o sócio Nuno Pena desmistifica o recurso a esta prática e explica as suas vantagens, em entrevista à Advocatus.

Nuno Pena é sócio de direito civil, comercial, societário e resolução de litígios na área da banca da CMS Rui Pena & Arnaut, mas muita da sua experiência passa pela arbitragem. É sobre ela que fala, a dias da conferência “Mitos da Arbitragem”, marcada para o próximo dia 16 maio, entre as 9h30 e as 12h30, na sede do escritório, em Lisboa.

A Conferência chama-se ‘Mitos da Arbitragem’, por isso comecemos por aí. Quais são os mitos acerca da Arbitragem que mais impedem que seja uma opção considerada pela generalidade das empresas?

Apesar do muito que se tem avançado, subsistem aspetos relevantes ainda não compreendidos pela generalidade dos operadores, o que constitui terreno fértil para o surgimento de Mitos que não contribuem para que mais empresas considerem a arbitragem. Ideias como a de que os custos da arbitragem são sempre mais elevados do que os custos da justiça dos tribunais comuns; de falta de transparência e consistência das decisões arbitrais; de que a arbitragem não se adequa ou tem menos afinidades com certos setores de atividade económica do que outros; de não absoluta independência dos árbitros, entre outras. Pretendemos, em conjunto com os nossos convidados, confrontar esses mitos com os dados reais disponíveis.

Queremos igualmente debater alternativas de financiamento (third party funding e não só), as vantagens e desvantagens da celeridade decisória face aos tribunais comuns (nem sempre aproveita a ambas as partes e isso tem influenciado as opções dos operadores, particularmente em sistemas como o nosso, em que o recurso aos tribunais comuns, pelos atrasos que encerra, assegura uma inequívoca vantagem aos demandados), perícias técnicas, livre composição do tribunal, flexibilidade da organização, especialização e responsabilidade dos árbitros, entre outras.

Contamos neste exercício com os contributos dos nossos painéis e dos participantes pois, sem interação e partilha de experiências, o debate, mais que a vivacidade, perde a sua riqueza.

Trazem oradores nacionais e internacionais, nomeadamente da banca (Goldman Sachs), para quem a via arbitral é o seu dia-a-dia mas que em Portugal estão a experimentar bem de perto a morosidade da Justiça portuguesa. É para estes casos que a Arbitragem é indicada?

Saber se a arbitragem faz parte ou não do dia-a-dia dos nossos convidados, o porquê de uma ou outra possibilidade e a sua adequação ao seu setor específico, é o que esperamos discutir na conferência. A arbitragem é indicada para muitos casos e normalmente a celeridade é apontada como uma inequívoca vantagem.

Há, porém, muitos outros aspetos que podem condicionar a opção pela arbitragem. Desde logo, a própria possibilidade de opção por essa via de resolução de litígio, porque quando inexista uma cláusula arbitral não é possível a arbitragem (a menos que as partes nisso acordem posteriormente, o que não é frequente acontecer) Um outro aspeto curioso que já vi influenciar a escolha pelos tribunais comuns em detrimento da possibilidade da negociação de um compromisso arbitral – mesmo por banda da parte demandante que tinha todo o interesse na celeridade – é a publicidade das sessões de julgamento e das decisões judiciais.

A preponderância da transparência como fator de escolha ficou a dever-se ao facto do litígio ter tido muito eco na imprensa e a demandante querer um julgamento público e uma decisão publicada que pudesse pôr termo a todas as especulações que sobre o litígio em causa haviam sido feitas na imprensa.

Nuno Pena considera que “sem a real especialização dos juízes não podemos seriamente esperar que a especialização no papel resulte numa justiça célere e de qualidade”.Hugo Amaral / ECO

Está envolvido com processos muito relacionados com a esfera financeira. Qual é a sua opinião sobre a especialização dos tribunais?

A crise na banca dos últimos anos e, muito especialmente, o colapso de um dos maiores bancos nacionais no quadro de um regime jurídico nunca antes experimentado, desencadeou um sem número de litígios, com relativa complexidade técnica e apelando a um conhecimento do jargão e conceitos particulares da indústria financeira. O fenómeno congestionou ainda mais os nossos já de si assoberbados tribunais e suscitou novamente a questão da sua especialização. O tema é, pois, recorrente.

Ainda em janeiro deste ano assistimos a (mais) um alegado reforço da especialização dos tribunais. Segundo o anunciado, visou-se aumentar o número de tribunais especializados e o número de juízos especializados nos locais onde se percebeu que a oferta era insuficiente. O Ministério da Justiça indicou, então, que o “reforço da especialização” concretiza-se através da criação de juízos em matéria de comércio, família e menores, do trabalho, de instrução criminal e de execução, verificando-se ainda o desdobramento de atuais juízos de competência genérica em juízos especializados.

Para tentar responder o mais objetivamente à questão colocada, devo dizer que estou obviamente de acordo e sou mesmo a favor da especialização dos tribunais. Porém, verdadeiramente importante é assegurar a especialização dos juízes. Lendo estas notícias e até os diplomas que sustentam as reformas, podemos facilmente enlevar-nos e presumir que a especialidade dos tribunais e das secções aumentaria ipso facto a qualidade e celeridade das decisões das decisões judiciais.

Não obstante, uma coisa é a especialização das secções e outra, bem distinta é a especialização dos juízes, sendo cada vez mais evidente que somos levados a tomar uma coisa pela outra, o que está longe de ter respaldo na realidade. Ora, o que esta nos ensina, tantas vezes da pior forma, é que, lamentavelmente, há casos de quase total impreparação de juízes de tribunais ou secções de competência especializada nas matérias que lhes compete conhecer, sem prejuízo de encontrarmos, obviamente, juízes com elevada competência técnica nessas mesmas matérias.

Ora, sem a real especialização dos juízes não podemos seriamente esperar que a especialização no papel resulte numa justiça célere e de qualidade. Dito isto, e sem querer ser desmoralizador, queria deixar nota de que a morosidade da nossa justiça radica em causas mais profundas. A especialização é boa sim, mas, por si só, não resolve este flagelo que a todos confrange.

A arbitragem pode ser uma alternativa a esta especialização?

Não se pretende que a arbitragem rivalize com o poder dos tribunais. Pretende-se sim que o complemente, ao reduzir a quantidade de processos distribuídos aos tribunais. Assim, alternativa, no sentido de poder solucionar a questão anterior da especialização em termos gerais, parece-me que não.

Desde logo porque muitas das matérias em que a especialização é necessária nos tribunais comuns não são arbitráveis, caso dos temas de natureza penal. Não obstante, é inequívoco que, permitindo a arbitragem voluntária – nos casos em que a mesma possa ocorrer – que as partes escolham a composição do tribunal arbitral, essa escolha assegurará, através da criteriosa análise curricular dos árbitros, a mais correta adequação do julgador ao caso.

Recentemente – em finais do ano passado – foram chumbados dois projetos, um do BE e outro do PCP, que visavam proibir o Estado de recorrer à arbitragem em matéria administrativa e fiscal… é sintomático de que o que digo faz algum sentido. O Estado pode e deve submeter a arbitragem determinados contratos em que seja parte.

Nuno Pena

Sócio da CMS Rui Pena & Arnaut

É sabido que alguns casos tratados por si e pela sua equipa acabaram por se desdobrar em mais do que uma jurisdição, designadamente entre Portugal e o Reino Unido. Como é que compara a justiça de um lado e de outro?

Por estarmos tão umbilicalmente ligados com os nossos escritórios espalhados pelo mundo acabamos por ter um contacto muito estreito com as soluções jurídicas e modos de trabalhar dos colegas e tribunais de outras jurisdições.

Sobre isso, e focando-me essencialmente sobre o caso do Reino Unido, cujo sistema muito admiro pelo seu realismo, objetividade, clareza e pragmatismo, guardo duas grandes impressões: a primeira é a de que, individualmente, os seus operadores jurídicos não são melhores nem piores que nós; a segunda – e aquela realmente faz a diferença – é a sua quase obsessiva organização, eficiência e pragmatismo.

Tribunal e advogados levam a preparação dos casos ao limite do possível. As sessões de julgamento constituem verdadeiras lições de organização e disciplina. Guardo também a melhor impressão do profundo nível de conhecimento dos juízes. Não o conhecimento jurídico, que é um dado adquirido, mas o conhecimento sobre o setor de indústria ou atividade subjacente ao caso em que é chamado a decidir. Muito contribui para isso o facto de os advogados mais reputados terminarem as suas carreiras desempenhando igualmente o papel de juízes. Por vezes até a tempo parcial e mantendo a sua prática enquanto advogados.

A equipa de sócios de Resolução de Litígios foi recentemente reforçada. A Arbitragem passou a ser uma aposta estratégica da CMS Rui Pena & Arnaut?

É verdade. Temos um enorme orgulho em que a Rita (Gouveia) e o Miguel (Esperança Pina), advogados de mão cheia e com uma experiência ímpar em arbitragem internacional, mas, sobretudo, duas pessoas de enormíssima qualidade humana, tenham escolhido a nossa sociedade e, concretamente, o projeto de expansão do departamento de contencioso e arbitragem que o Joaquim (Sherman de Macedo) e eu vínhamos há anos desenvolvendo, precisamente assente numa aposta estratégica na arbitragem.

Temos participado muito ativamente em arbitragens domésticas e, num número crescente, em arbitragens internacionais. São projetos particularmente exigentes em termos de dedicação dos sócios e daí a vantagem de reforçar a nossa área com o Miguel e com a Rita. Sendo o Miguel o mais sénior, contamos com ele também para assumir o protagonismo que merece e que lhe compete atenta a sua vasta experiência, particularmente, em arbitragem internacional.

Penso que ficamos seguramente com uma das mais fortes equipas do mercado. Os clientes que nos confiam assuntos, sobretudo os de maior complexidade, têm a natural expectativa de terem pela nossa parte uma resposta e disponibilidade a toda a prova. O nome e a reputação dos sócios que lideram a resolução desses litígios é, por esse motivo – a par, naturalmente, da composição das equipas -, um fator incontornável no momento em que se entrega a representação de um assunto a uma sociedade de advogados.

Se tivesse de elaborar uma short list das principais vantagens da arbitragem, que adjetivos ou qualificações escolheria?

Diria que o que torna a arbitragem um instrumento do maior interesse é a sua quase inesgotável flexibilidade. É uma realidade verdadeiramente moldável aos interesses das partes, permitindo-lhes criar um tribunal com regras de funcionamento mais adequadas ao litígio.

Tudo o resto são, em minha opinião, corolários desta principal característica, de que destacaria a sua natureza menos formalista, em comparação com o processo judicial, a tramitação de forma mais rápida, garantindo às partes celeridade no resultado final (sentença arbitral e execução), a confidencialidade e a possibilidade de escolha dos árbitros.

A arbitragem também pode ser e é utilizada em temáticas de comércio e de investimento entre nações. Esta é uma vantagem bastante significativa já que, normalmente, a substituição de decisões judiciais por sentenças arbitrais fomenta a confiança entre investidores de um Estado e de outro. Nestes casos o recurso à arbitragem internacional gera um ambiente de maior segurança jurídica e propício às trocas comerciais e ao investimento.

Para Nuno Pena o custo elevado da arbitragem é um dos grandes mitos. “Não tenho dúvidas que há operadores que prefeririam suportar os custos da resolução do litígio em três a quatro vezes com a garantia da resolução do diferendo em um ano, do que, em alternativa, manter a disputa durante vários anos com o desgaste inerente na operação, nas relações entre as partes e no mercado”.Hugo Amaral / ECO

O que “falha” na jurisdição dita normal que não falha na arbitragem também passa muito pelas qualificações mais técnicas de quem decide?

Não existe nenhum sistema que dê 100% de garantias. Não obstante, a possibilidade de escolhermos para árbitro alguém que preencha o perfil que entendamos como mais adequado a apreender o caso e a decidi-lo oferece, à partida, mais vantagens.

Sobre a escolha do perfil do árbitro, muito há a dizer. É importante que a escolha obedeça a critérios bem estruturados. Tem que se ponderar o conhecimento técnico que possa ser determinante para o caso mas ainda outros aspetos que pesam e que variam de caso para caso, como seja o perfil mais ou menos formal, a idade, a intervenção noutros casos, o domínio do idioma e o conhecimento da lei aplicável.

Que apelo faria ao poder político relativamente à divulgação da arbitragem, de forma a atrair mais investidores estrangeiros em Portugal?

A arbitragem nasceu privada. Uma coisa de homens justos e nobres. Radica na natureza humana. É bom que não se perca isso de vista. Deve manter-se independente e voluntária, como na sua génese. A sua divulgação, entre nós, tem sido adequada. Os operadores privados e investidores, sobretudo os mais sofisticados, conhecem bem os seus meandros. Iniciativas como a que estamos a preparar podem alargar o seu uso por mais atores. Assim, se o apelo pode ser feito ao poder político é que não interfira para além do estritamente necessário. Que não desvalorize e não estigmatize esta outra forma de fazer e gerir a justiça.

Recentemente – em finais do ano passado – foram chumbados dois projetos, um do BE e outro do PCP, que visavam proibir o Estado de recorrer à arbitragem em matéria administrativa e fiscal… é sintomático de que o que digo faz algum sentido. O Estado pode e deve submeter a arbitragem determinados contratos em que seja parte. A tradição é grande e muito antiga entre nós e encontra a sua razão de ser em muitos fatores – a confiança dos investidores é um deles – que não devem ser abordados com ligeireza e, muito menos, distorcidos por razões de ideologia histórico-partidária.

Que alternativas de financiamento existem à arbitragem, já que tem custos mais altos que os tribunais judiciais?

A relação custo/eficiência é sempre relativa. Não tenho dúvidas que há operadores que prefeririam suportar os custos da resolução do litígio em três a quatro vezes com a garantia da resolução do diferendo em um ano, do que, em alternativa, manter a disputa durante vários anos com o desgaste inerente na operação, nas relações entre as partes e no mercado. É o que sucede em litígios societários, por exemplo, e cuja morosidade pode, inclusive, ser fatal para uma empresa.

Mas iria mais longe. Face ao regulamento das custas processuais em vigor, os tribunais judiciais apenas são vantajosos ao nível de taxas de justiça e encargos para litígios até cerca de cinco milhões de euros. E, mesmo para esses casos, pode haver alternativas muito próximas dos tribunais judiciais ao nível dos custos.

De notar ainda que as tabelas dos custos e encargos da arbitragem – ao contrário do regulamento das custas processuais – não são proporcionais ao valor em disputa, como acontece na via judicial. Sobre as alternativas de financiamento, falaremos na conferência sobre o financiamento por terceiros (e até pela contraparte em casos limite), cessões de créditos, seguros e outros possíveis instrumentos ao dispor das partes.

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