Notários preparam app. “Mais do que tornar o notariado sexy, vai ser ferramenta dos cidadãos”

Em entrevista ao ECO, Jorge Batista da Silva, bastonário da Ordem dos Notários, conta como prevê melhorar a atratividade do notariado para cidadãos e para os próprios profissionais.

O bastonário da Ordem dos Notários revela que vão ser desenvolvidas este ano aplicações móveis para iOS e Android com serviços notariais úteis para os cidadãos, disponíveis na palma da mão, alterando “a forma como as pessoas gerem a sua vida com o seu cartório notarial”.

“Se eu fiz uma procuração, vou saber que fiz uma procuração e até [poder] pedir uma cópia daquele documento de forma automatizada, sem andar à procura nos papéis lá de casa, porque vou ter no meu smartphone o acesso à informação, assim como vou poder fazer a escolha voluntária e fazer um agendamento de um serviço”, diz Jorge Batista da Silva, em entrevista ao ECO.

Depois de ter sido lançado o Arquivo Eletrónico de Documentos Notariais, que permite aos cidadãos desmaterializar qualquer documento, mantendo a validade junto de qualquer entidade pública ou privada — e que ronda os 600 mil documentos inscritos na base de dados em apenas um ano e meio –, a Ordem dos Notários quer ainda que o próximo Governo autorize a criação de uma plataforma própria para atos à distância.

O bastonário confirma ainda que vai “propor” — e nunca “exigir” — ao próximo Governo alterações aos novos estatutos da Ordem dos Notários, por exemplo, para que estes profissionais possam realizar casamentos e divórcios. Mas também reduzir burocracia, incluindo a “a burocracia mais estúpida” do setor neste século, que é a apostila obrigatória para documentos enviados para o estrangeiro.

Por fim, Jorge Batista da Silva revela que será aberto em breve um novo concurso para atribuição de licenças a novos cartórios. Através dele, será cumprida a meta da Ordem de ter pelo menos um cartório em cada um dos concelhos do país.

Veja também: “O mercado vai ser inundado por imóveis ilegais e sem licença de utilização” (parte 1)

Jorge Silva, bastonário da Ordem dos Notários, em entrevista ao ECO - 16JAN24
Jorge Silva, bastonário da Ordem dos Notários, em entrevista ao ECO Hugo Amaral/ECO

Recentemente, vieram a público as conclusões do Grupo de Estados contra a Corrupção, inserido no Conselho da Europa, com críticas à forma como Portugal previne e combate à corrupção. Quando o senhor bastonário foi reeleito, propôs-se a contribuir para o combate a esse flagelo. Que contributo é que a Ordem dos Notários pode ter aqui nesta missão?

A Ordem e os próprios notários têm um contributo desde logo diário, que é no combate ao branqueamento de capitais. Os notários sempre foram bastante ativos nessa matéria. Continuamos a achar que Portugal devia ter instrumentos mais ágeis de combate à corrupção e ao branqueamento de capitais. Esse é, aliás, o cerne do combate à corrupção, se nós conseguirmos controlar o fluxo de capitais ilegais, e que acontecem em áreas como o imobiliário e outros tipos de negócios jurídicos que são contratualizados junto dos cartórios notariais. Nós temos que conseguir ter uma maior ligação às próprias entidades de investigação para conseguirmos definir padrões anormais no investimento imobiliário. Por exemplo, para podermos formar melhor os notários para fazer esse combate ao branqueamento de capitais.

A própria Ordem, ao criar o Arquivo Digital Nacional de Escrituras, tem vindo a desenvolver ferramentas que espero ainda no ano de 2024 as poder começar a utilizar a nível nacional, que vão permitir, exatamente, detetar fluxos anormais de transmissão de propriedade, ajudar os próprios notários, assessorá-los na missão de identificar operações anómalas. E uma dessas ferramentas é a possibilidade de o notário, por exemplo, inserir as características de uma determinada transação e o próprio sistema lhe diz ou lhe propõe um conjunto de respostas daquilo que tem que fazer. Os notários deixam de ter a necessidade de ver a lei e de verificar todos os pressupostos.

E fazem muitas queixas ou muitas denúncias às autoridades, de transações e operações que podem ser obscuras ou ter algum tipo de suspeita?

Os notários fazem muitas queixas.

Pode quantificar?

Normalmente, na ordem das centenas por ano. Sendo certo que é preciso normalizar a atuação dos vários agentes. Nós temos que normalizar a atuação dos vários agentes que estão no mercado da contratação, sejam eles notários, conservadores, advogados, solicitadores. E temos de normalizar isto no sentido de que os padrões de comunicação sejam os mais iguais possíveis. Neste momento, isso não existe. Este é um problema que já foi identificado por várias autoridades, nomeadamente as autoridades internacionais. Nós temos que definir padrões, e os padrões têm que ser definidos pelo Ministério da Justiça, e temos que ter uma Comissão de Combate (efetivamente) ao Branqueamento de Capitais que seja mais atuante e que ajude na definição desses padrões. Aliás, acontece uma coisa extraordinária: a Ordem dos Notários é uma das entidades que mais comunicações faz no âmbito do branqueamento de capitais, mas não faz parte da Comissão de Combate ao Branqueamento Capitais.

Porquê?

Verdadeiramente, ninguém sabe. Fui bastonário com duas ministras da Justiça e com vários secretários de Estado e todos são a favor. Apesar de estar na [tutela da] Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, todos são a favor que a Ordem integre a Comissão de Combate ao Branqueamento Capitais. O facto é que até hoje não integra, o que é uma coisa quase inexplicável.

Ora aí está algo para o caderno de encargos para o próximo ministro da Justiça, para que faça pressão junto das Finanças para que a Ordem seja integrada nessa comissão.

Não há dúvida nenhuma, até porque eu garanto, e isso eu posso garantir, que a Comissão teria que efetivamente começar a funcionar [se a Ordem dos Notários a integrasse]. E, na minha opinião, a Comissão não funciona convenientemente. E não funciona convenientemente, e é uma crítica que eu tenho apontado, desde logo, por não existir uma disponibilização a todos os cidadãos da informação relativa ao combate ao branqueamento capitais. Todos os anos, aliás trimestralmente, nós deveríamos ter uma noção do número de denúncias que são feitas. Em que tipo de mercado, em que tipo de operações é que são feitas as comunicações, quais os agentes que as fazem, e esses números estatísticos deviam estar no site da Comissão de Combate ao Branqueamento Capitais, mas, infelizmente, cada vez que vamos a esse site, pelo menos desde que eu sou bastonário, que lá está uma informação a dizer que brevemente serão disponibilizados os dados. E já vou em seis anos.

Falou do Arquivo, que tem sido apontado pelo senhor bastonário como um sucesso. Entretanto, finalizou o ano de 2023. Está em condições de dar um balanço desse projeto durante o ano que agora passou?

Os números superaram aquilo que eram as nossas previsões. São realmente avassaladores. E estamos a falar de algo que funcionou da mesma forma durante oito séculos. Ou seja, durante oito séculos nós tivemos um sistema centralizado no papel e, antes, através de outros materiais que eram usados para a escrita. Portanto, desde a fundação do país, tudo aquilo que era a guarda, o arquivo, de textos dos documentos dos nossos clientes, da casa, das escrituras de compras e vendas, dos empréstimos, eram feitos, fundamentalmente, num único exemplar em papel. Portanto, só houvesse um incêndio, se houvesse alguma coisa, o original perdia-se.

Desde dia 1 de junho de 2022, há cerca de um ano e meio, nós passamos a ter o duplicado de tudo em digital. Neste momento, caminhamos a grande velocidade para os 600 mil contratos depositados eletronicamente. Só estou a falar daqueles contratos que são por escritura pública, os contratos de alguma forma mais importantes na vida das pessoas. Desses, caminhamos para as duas milhões de consultas, o que significa que aqueles documentos já foram consultados a quase uma média superior a três vezes [cada], o que é bastante importante. E o que é bastante importante também é que qualquer documento que neste momento seja arquivado, ou seja desmaterializado por um notário, para além das suas próprias escrituras, qualquer documento que a pessoa leve, original, pode ser desmaterializado por um notário, digitalizado, disponibilizado um código ao cidadão e o cidadão pode usar esse código junto de qualquer outra entidade pública ou privada, com dispensa do papel. Portanto, já conseguimos dispensar o papel para os nossos documentos. Se alguém quiser desmaterializar os documentos que tem em casa, o seu currículo, o seu certificado de habilitações, o que seja, nós conseguimos, com dispensa do papel.

Nós não fazemos exigências [ao Governo] na nossa Ordem. O que fazemos é propostas de melhoria daquilo que são os nossos instrumentos.

A Ordem dos Notários tem novos estatutos. Foram promulgados pelo Presidente da República em dezembro. Já foram publicados, como os de outras Ordens, uma reforma prevista no PRR. Vai fazer como a bastonária da Ordem dos Advogados e exigir ao próximo Governo uma revisão desses estatutos?

As ordens são entidades reguladoras e, portanto, nós não partimos para a conversa com exigências. Normalmente, partimos na base do diálogo, fazendo contrapropostas sobre aquilo que pode ser melhorado nos estatutos. Nós não vamos exigir, tem sido essa a minha postura ao longo dos anos, independentemente do Governo que esteja [em funções].

Não são bem, bem entidades reguladoras. Têm características diferentes de uma entidade reguladora.

Se for ver, a primeira obrigação de uma ordem é a defesa do interesse público e a defesa do interesse público através da regulação da atividade dos seus profissionais por competências disciplinares. E, nessa medida, a nossa principal missão é ser uma entidade reguladora da atividade dos profissionais. Nós não somos um sindicato, porque a nossa obrigação de defender os interesses dos nossos associados só aparece já quase ao fundo das nossas atribuições.

Aliás, a atividade sindical pelas Ordens é proibida.

É proibida. Portanto, nós não fazemos exigências na nossa Ordem. O que fazemos é propostas de melhoria daquilo que são os nossos instrumentos.

Jorge Silva, bastonário da Ordem dos Notários, em entrevista ao ECO - 16JAN24
Jorge Silva, bastonário da Ordem dos Notários, em entrevista ao ECOHugo Amaral/ECO

Então, deixe-me reformular a pergunta: vão propor ao próximo Governo alterações aos vossos novos estatutos?

Vamos, vamos propor, até porque já estava previsto com este Governo. O que aconteceu — isto é público, foi reconhecido pelo próprio grupo parlamentar do Partido Socialista — é que este processo foi conduzido de uma forma um pouco desorganizada. Foi avançando até uma determinada altura, até fevereiro, em que nos foi dito que o processo ia ser discutido e, portanto, teríamos bastante tempo até final de julho. De repente, só tínhamos até final de abril. Depois, alargaram mais 30 dias. O prazo depois acabou na Assembleia. Era um processo bastante confuso.

Nós conseguimos que o Governo introduzisse no atual texto aquilo que eram as nossas principais preocupações e, portanto, nesse ponto de vista, foram respeitadas aquilo que seriam, vou-lhes chamar, as linhas vermelhas, que é uma expressão que está muito na moda. Foram praticamente todas respeitadas, com exceção de uma que acaba por ser um pouco inócua, que tem a ver com a intervenção dos notários e que não é muito importante.

Além disso, foi-nos ainda dada a possibilidade de ter novas áreas de atuação, como seja a apostila, que considero ser a burocracia mais estúpida no nosso setor no século XXI, que é qualquer português, para mandar um documento para o estrangeiro, ter que se fazer uma coisa que se chama colocar a apostila, e só há cinco balcões [para o fazer] no país. Então temos a questão da apostila, temos a questão do certificado acessório europeu, que está cada vez mais em voga por causa das heranças transnacionais, em que a pessoa tem que fazer partilha de herança lá fora…

Isso foi o que entrou. Quero saber era onde é que podia ter ido mais além.

Há duas questões. Uma tem a ver ainda com competências. Nós defendíamos a possibilidade de os notários poderem fazer casamentos e divórcios, como acontece no mundo quase todo. E temos questões de resolução de, essencialmente, burocracia, de processo eletrónico. Nós gostaríamos que os nossos estatutos tivessem previsto — de forma específica, ou seja, não remetendo para a lei geral –, que todos os nossos processos seguissem uma tramitação eletrónica administrativa. Nós vamos fazê-lo. Vamos dar ao cidadão forma de o escolher. Mas gostaríamos que isso estivesse previsto nos nossos estatutos.

E tem outro ponto bastante importante, que tem a ver com uma questão que eu discuti no Parlamento e que foi o que provavelmente me deixou mais chateado nestes estatutos. Foi a não consignação nos estatutos que os serviços notariais são apenas praticados por notários. Neste momento, o que temos em Portugal é uma coisa estranhíssima em que o legislador permite que mil e uma entidades utilizem a expressão “serviços notariais” para designar os serviços que praticam. Isto é um absurdo. Os consumidores são enganados diariamente com pessoas que falsamente utilizam a expressão serviços notariais. Isso deve ser punido por lei. Se for ver ao dicionário, serviços notariais são serviços praticados por notários. É o que lá diz.

Isso também advém de não saberem o que é, de facto, a figura do notário. Como é que se torna mais sexy a profissão de notário?

A profissão de notário tornou-se — para já, pelo menos — mais sexy para aquilo que são os candidatos a notário. Já não é mau. Era das profissões com os profissionais em idade mais avançada e agora, felizmente, somos uma profissão absolutamente rejuvenescida. Muito próximo de 50% dos notários portugueses já têm menos de 40 anos e isso é bastante positivo. Primeiro, desde logo porque permite fazer uma renovação da profissão, e isso permitiu-nos abrir cartórios no país inteiro. E nós, felizmente, já estamos praticamente em todos os concelhos do país…

Quantos faltam neste momento?

Neste momento, faltam-nos 20 e poucos. E vamos ter um concurso agora este ano e, portanto, vamos acabar de os preencher.

Já era pública essa informação de que ia abrir um concurso este ano?

Em teoria deve abrir todos os anos, mas torna a ser pública. Este ano nós vamos abrir um concurso e, portanto — os meus colegas estão sempre a perguntar-me isso — vai haver um concurso. Só estou à espera do novo estatuto para o poder abrir.

Para quantas vagas?

Normalmente abrimos o concurso para o número de vagas existentes, e abrimos para todas. Portanto, eu acredito que, na altura do concurso, haverá cerca de 30 licenças.

Eu voltava à questão de como é que se torna o notariado mais sexy. Nestes estatutos há duas coisas novas, especialmente para os jovens: a figura do sócio e do notário associado. Vai ser possível ter mais do que um notário no cartório e, com isso, também tornar os cartórios mais céleres.

E 2024 é um ano — mais provavelmente 2025, porque 2024 ainda vai ser uma fase de desenvolvimento e de investimento — em que se vai alterar a forma como nós interagimos com os cidadãos e com as empresas. Este ano, nós vamos lançar um conjunto de serviços, as apps para para iOS e para Android, que vão permitir alterar a forma como as pessoas gerem a sua vida com o seu cartório notarial, em que o cidadão vai ter acesso a tudo aquilo que são os dados praticados ao longo da sua vida que foram registados para a frente. Portanto, se eu fiz uma procuração, vou saber que fiz uma procuração e até [poder] pedir uma cópia daquele documento de forma automatizada, sem andar à procura nos papéis lá de casa, porque vou ter no meu smartphone o acesso à informação, assim como vou poder fazer a escolha voluntária e fazer um agendamento de um serviço.

Quero até, e isso é uma das propostas que nós temos para o novo Governo, que haja a possibilidade de a Ordem ter a sua própria plataforma de atos à distância. E o que nós queremos é que muitos mais atos sejam feitos à distância, mas através de uma plataforma da própria Ordem. Por que é que não se utiliza a plataforma do Ministério da Justiça? Pela minha experiência, as plataformas do Ministério da Justiça têm tempos de evolução que não se coadunam com os tempos de hoje. Nós fazemos alterações à nossa plataforma de Arquivo quase todas as semanas…

Portanto, seria mais ágil.

Muito mais ágil, e tem muito mais a ver com a resposta, com as questões que os cidadãos e que os próprios notários levantam. Com as novas apps da Ordem, as pessoas vão conseguir fazer os seus negócios de uma forma segura, utilizando sistemas de assinatura eletrónica qualificada e sistemas de biometria, que vão permitir efetivamente registarmos a inalterabilidade quer do documento que foi assinado, assim como garantirmos quem é que o assinou e a manifestação de vontade, continuando a ter segurança jurídica. Essa é a forma como nós vamos tornar aquilo mais sexy. Mais do que tornar o notariado sexy, nós queremos tornar o notariado uma ferramenta dos cidadãos.

Com isso, eu não afasto um ponto que é bastante importante. Nós não vamos fechar os nossos balcões de proximidade. É absolutamente absurda a forma como se tem olhado para o atendimento aos cidadãos, ou como alguns políticos olham para atendimento aos cidadãos. O digital é efetivamente o futuro, mas nós não podemos esquecer o presente. Quando se fala de iliteracia digital e iliteracia financeira, muitas vezes as pessoas pensam que estamos a falar do interior do país ou que estamos a falar de um sítio muito recôndito. Não. A maior parte da iliteracia digital e da iliteracia financeira, e da iliteracia política, está nos grandes centros urbanos. Nós temos que continuar a ter balcões de atendimento físico, até porque, se queremos que as pessoas passem para o mundo digital, tem que haver um terceiro de confiança e exercício de confiança.

Parte 1: “O mercado vai ser inundado por imóveis ilegais e sem licença de utilização”

  • Diogo Simões
  • Multimédia

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