A oposição (também) mora no Banco de Portugal

Do IRC, aos jovens que emigram, passando pela garantia pública, alertas de Centeno não têm caído bem junto do Governo, que riposta aos argumentos como se a oposição também morasse na Rua do Comércio.

Há quatro anos e meio, desde que vestiu o fato de governador do Banco de Portugal, Mário Centeno deixa o mesmo alerta: é preciso manter as contas públicas equilibradas e construir almofadas que permitam acomodar choques futuros. Mas a entrada em funções de um novo governo de cor política diferente daquela que Centeno ‘usou’ quando foi ministro das Finanças — e depois de ter admitido ser primeiro-ministro em substituição de António Costa –, somada à possibilidade, não desmentida, de uma candidatura a Belém, acentuaram o tom grave do governador sobre o estado das contas públicas e o tom crítico sobre algumas das medidas mais emblemáticas de Joaquim Miranda Sarmento, o ministro de Estado e das Finanças. Os alertas de Centeno não têm caído bem junto do Governo, particularmente do Ministério das Finanças, que riposta aos argumentos defendidos, apontando o dedo a uma oposição que também mora na Rua do Comércio.

Da redução do IRC, à garantia pública para a habitação, passando pelos jovens que emigram e o maior crescimento da despesa em décadas, recorde os principais alertas na semana em que o Banco de Portugal apresenta as previsões e análise para a economia portuguesa.

Redução do IRC com pouco efeito no crescimento

A tão debatida redução do IRC em um ponto percentual pode, afinal, ter um impacto diminuto na atividade económica a longo prazo. É pelo menos este o argumento do Banco de Portugal, no mais recente aviso à navegação.

Numa análise divulgada na quarta-feira passada, no âmbito do Boletim Económico de dezembro, os economistas do regulador concluem que a redução da taxa efetiva do IRC em um ponto percentual pode aumentar a atividade económica em 0,1% no longo prazo caso as empresas reinvistam totalmente a poupança fiscal geral. Caso não o façam, a descida do imposto pode ser negativa para a economia, uma vez que o Estado terá de recompensar a perda de receita.

No modelo utilizado a perda de receita pública gerada pela redução permanente da taxa efetiva de IRC terá sempre de ser compensada no longo prazo para estabilizar a dívida pública em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB), quer seja através do aumento do IRS, do aumento dos impostos sobre o consumo ou da redução do consumo público.

A decisão de reinvestimento do produto da redução fiscal encontra-se na esfera de decisão da empresa, pelo que uma alternativa à redução estatutária do IRC é criar incentivos diretos à capitalização das empresas e assim ao reinvestimento da redução da carga fiscal relativamente às empresas“, sugere a análise.

Em entrevista à RTP3, nessa mesma noite, o ministro das Finanças afirmou não pôr em causa “a qualidade do trabalho”, mas como académico quer “ver a metodologia, os dados” do mesmo. Ainda assim, procurou rebater críticas.

“Portugal tem das taxas mais elevadas da UE, mas depois tem receita de IRC relativamente baixa. O que se pretende é o contrário. Taxas baixas e receita elevada”, disse. Neste sentido, defendeu que “nos últimos 20 anos praticamente todos os países reduziram a taxa máxima de IRC, Portugal aumentou-a” e que existe “um conjunto significativo de estudos” que “mostra que quando o ponto de partida das taxas de imposto é elevado, as primeiras reduções têm um maior impacto no crescimento“.

A análise do Banco de Portugal surge após o Parlamento confirmar, no âmbito da especialidade do Orçamento do Estado para 2025 (OE2025), a descida da taxa gera do IRC de 21% para 20%. Em outubro, a dois dias da entrega da proposta orçamental, o governador já tinha deixado um alerta sobre a questão.

“Os impostos são a receita do Estado e são os que queremos para financiar a despesa. Como é que se pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo: cortar impostos e aumentar a despesa? Essa é a discussão. O IRC é tão legitimamente invocado como imposto que se possa cortar como qualquer outro imposto. A questão é como é que se gere o equilíbrio face às exigências que o futuro nos coloca“, afirmou em conferência de imprensa de apresentação do Boletim Económico de outubro, questionado sobre o tema pelos jornalistas.

O governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, intervém numa apresentação no Museu do Dinheiro, em Lisboa. JOSÉ SENA GOULÃO/LUSAJOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

Os números “enganadores” dos jovens que emigram

Antes de ser ministro das Finanças entre 2015 e 2020, Mário Centeno fez carreira académica como especialista no mercado laboral e foi esse precisamente o tema sobre o qual deixou um aviso. Numa altura em que o Governo defendia o IRS Jovem como uma medida essencial para contrariar a saída de jovens de Portugal, Mário Centeno defendeu que “o país vive focado numa realidade que é descrita com números enganadores” e que é capaz de reter talento.

Nos últimos oito anos, a população ativa com formação superior aumentou em média 70 mil indivíduos por ano. Das universidades portuguesas, públicas e privadas, saem por ano pouco mais de 50 mil portugueses“, apontou durante uma intervenção na 12ª conferência do regulador dedicada à educação e qualificações em Portugal.

Mário Centeno defendeu que “o país vive focado numa realidade que é descrita com números enganadores” e que é capaz de reter talento.

O governador argumentou que “Portugal tem conseguido ser receptor líquido de diplomados” e que os dados do Eurostat mostram que “a percentagem de jovens portugueses que emigram é inferior – menos de metade – à de países como a Alemanha, a Dinamarca ou os Países Baixos“.

O aviso não ficou sem resposta e, mais tarde, a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Maria do Rosário Palma Ramalho indicou que os dados com que o Governo trabalha indicam que “três em cada 10 jovens escolhem emigrar e muita dessa emigração é dos mais qualificados”.

Não sei a que dados acedeu o governador do Banco de Portugal”, disse, tendo na mesma ocasião no parlamento o CDS-PP – um dos partidos que suportam o Governo – apelado a que Centeno “pudesse retificar as suas declarações”.

Garantia pública no crédito à habitação

A garantia do Estado no crédito à habitação para jovens não escapou incólume a reservas por parte do regulador. Ainda a medida que tem sido uma das bandeiras do Governo para a juventude se estava a desenhar e Mário Centeno já alertava para a necessidade de garantir que os mutuários teriam condições para assegurar o cumprimento do crédito, de forma a evitar uma transferência do risco para o Estado.

Quando movemos o risco de um agente económico para outro agente económico, como através de garantias, temos de ter garantia de que o novo agente tem capacidade para garantir o risco”, referiu em maio o ex-ministro das Finanças, destacando que as garantias públicas têm um processo muito complexo ao abrigo da lei portuguesa e por isso o processo “deve ser sempre cauteloso”.

Mais tarde, o parecer remetido pelo regulador ao Governo com várias reservas e reparos obrigou a um esforço suplementar para acomodar as observações do supervisor. Entre as recomendações incluia-se que o Governo pedisse uma opinião ao BCE por considerar que a medida poderia chocar com a independência dos bancos centrais e por causa em causa o cumprimento de medidas macroprudenciais.

A dois dias da entrega do OE2025, questionado pelos jornalistas, Centeno reiterou que “todas as medidas que adiem, aumentem o serviço da dívida e aumentem o risco dos mutuários são contrárias à estabilidade financeira”. Neste sentido, enfatizou a ideia que “a garantia pública é dada aos bancos e em nada protege os mutuários”.

A garantia pública é dada aos bancos e em nada protege os mutuários

Mário Centeno

Governador do Banco de Portugal

Os alertas sobre a matéria não se ficaram por aqui. No Relatório de Estabilidade Financeira de novembro, o supervisor escrevia: “a garantia do Estado pode contribuir para o aumento do endividamento das famílias e para o agravamento do risco de crédito, num cenário em que se mantém constante o rendimento do mutuário e os fatores que influenciam as taxas de juro no mercado“.

“Ademais, perante uma oferta limitada e pouco reativa do mercado da habitação em Portugal, um aumento significativo da procura pode levar a que os preços da habitação aumentem“, pode ler-se na análise. Paralelamente, deixou claro que se identificar um aumento significativo do risco das carteiras das instituições de crédito poderá recorrer aos instrumentos que tem à sua disposição para mitigar ou reduzir os riscos identificados.

O governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, durante a apresentação do Relatório de Estabilidade Financeira de novembro de 2024, na sede do Banco de Portugal, em Lisboa, 26 de novembro de 2024. MIGUEL A. LOPES/LUSAMIGUEL A. LOPES/LUSA

Maior aumento da despesa pública em mais de 30 anos

O aviso não é novo e, desde que tomou posse, regressa a cada época pré-orçamental ou perante medidas política com impacto considerável na despesa ou na receita: “é preciso cautela”, de forma a assegurar que o país continua a ter contas públicas equilibradas. O antigo ministro das Finanças tem repetido nos últimos meses que a política expansionista “deve ser usada com muita parcimónia” e argumentou que “o saldo da Segurança Social não pode ser usado para financiar a despesa permanente na Administração Central e Local”, já que significaria “prejudicar a sustentabilidade da Segurança Social e das poupanças para pagar pensões no futuro”.

O exercício de 2024 revela crescimento da despesa pública que não era observado desde 1992. Já passámos por anos suficientes de execuções orçamentais para perceber o que significa”, avisou em outubro.

O exercício de 2024 revela crescimento da despesa pública que não era observado desde 1992. Já passámos por anos suficientes de execuções orçamentais para perceber o que significa

Mário Centeno

Governador do Banco de Portugal

Miranda Sarmento procurou contrariar este argumento, considerando que a maioria do crescimento da despesa previsto para este ano “são decisões tomadas” pelo anterior Governo. “Se consultar o relatório para o Orçamento de 2024 está lá um crescimento da despesa de 9%, não vi esse alerta na discussão para 2024“, disse na semana passada o atual ministro das Finanças em entrevista à RTP3.

Uma das preocupações de Centeno centra-se na despesa que o Estado terá começar associado ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). “A dívida do PRR vai permanecer até aos próximos 30 ou mais anos”, disse. Ademais, o Banco de Portugal alertou recentemente que a incerteza macroeconómica e geopolítica, com consequências na condução da política monetária, é um risco para o custo do serviço de dívida.

Neste sentido, salientou que “a pressão para o aumento da despesa pública líquida deve ser enquadrada numa perspetiva de sustentabilidade intertemporal e em conformidade com as regras orçamentais da União Europeia, recentemente revistas“.

“Crucial” aumentar a execução do PRR

Era abril quando Luís Montenegro, acabado de tomar posse, assegurou que o Governo estava “muito empenhado” em recuperar atrasos na execução dos fundos europeus da coesão e do PRR. Meses depois, as recomendações do governador do Banco de Portugal mantêm-se.

Os resultados apresentados destacam que, embora Portugal tenha feito progressos significativos na execução do PRR, é crucial acelerar a execução dos projetos para atingir os objetivos estabelecidos“, avisou o Banco de Portugal em outubro.

Para o supervisor, “o cumprimento dos marcos e metas, que se tornarão progressivamente mais exigentes nas próximas fases, requererá maior atenção“. Os alertas do regulador bancário sobre a importância da execução do PRR registam-se desde o início do Plano e não são isolados. Também instituições como o Conselho de Finanças Públicas (CFP) têm insistido nesta matéria.

Os (pré-anunciados) prejuízos do Banco de Portugal

Poucos dias após tomar posse, o ministro das Finanças afirmou ter recebido com “surpresa, espanto e preocupação” a notícia de que o Banco de Portugal registou um prejuízo operacional superior a mil milhões de euros no ano passado. Em resposta, Mário Centeno garantiu que informou o atual titular da pasta das Finanças sobre o tema, tal como já tinha falado com o antecessor, Fernando Medina.

Obviamente que falei com o anterior e com o atual ministro das Finanças”, referiu o governador em maio. Os prejuízos de 2023 já eram esperados dada a alteração de política monetária do Banco Central Europeu (BCE), um cenário transversal a vários bancos centrais.

Uma análise económica com assinatura própria

Em setembro de 2023, ainda antes da queda do Governo, Mário Centeno iniciou uma prática inusitada: Em paralelo com a divulgação dos documentos oficiais e análises do Banco de Portugal, passou a divulgar uma análise económica com assinatura própria. Os textos são, na prática, artigos de opinião do governador do Banco de Portugal. E no primeiro, além de avisar para a encruzilhada das políticas monetária e orçamental, ressaltou especialmente o elogio em causa própria, à sua gestão nas Finanças. “Enquanto a área do euro cresceu 15% nos primeiros 15 anos deste século, Portugal ficou-se por um parco 1%! Em contraste, desde 2015 crescemos 17% e convergimos com a área do euro, que cresceu 13%”, identifica.

Em outubro deste ano, no mês da entrega da proposta de orçamento para 2025, Mário Centeno assinou outro ‘artigo de opinião‘, desta vez apenas disponível apenas em inglês. “It’s the economy”, escreveu em título o governador, a apontar especialmente para a necessidade de o BCE avançar com novas descidas de juros.

 

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