À procura de casa num mercado severamente hostil

Na génese da crise da habitação está a escassez de casas disponíveis e uma cada vez maior inacessibilidade das famílias para comprar ou arrendar casa. Urgem medidas para mudar este quadro nebuloso.

  • O ECO vai divulgar 5 séries semanais de trabalhos sobre temas cruciais para o país, no período que antecede as eleições legislativas de 10 de março. Os rendimentos das famílias, o crescimento económico, a crise da habitação, o investimento em infraestruturas e os problemas da Justiça vão estar em foco. O ECO vai fazer o ponto da situação destes temas, sintetizar as propostas dos principais partidos e ouvir a avaliação dos especialistas.

Nos últimos anos, Portugal tem sido palco de uma crise habitacional que tem afetado a vida de muitas famílias, especialmente aquelas que procuram viver e trabalhar nas grandes cidades como Lisboa e Porto. Este período tem sido marcado por uma “tempestade perfeita” produzido por uma subida acentuada dos preços dos imóveis e das rendas que não tem sido acompanhada pelo crescimento dos rendimentos das famílias, e assim contribuído para um mercado imobiliário cada vez mais inacessível para a população em geral.

Só nos últimos três anos, as rendas dos novos contratos de arrendamento aumentaram a um ritmo médio de 8,6% por ano, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE). Nas áreas metropolitana de Lisboa e do Porto, esse aumento foi ainda mais expressivo, com as novas rendas a aumentar mais de 9% por ano desde 2020.

A mesma dinâmica de crescimento observou-se nos preços das habitações. De acordo com dados do INE, o preço médio da habitação em Portugal aumentou a um ritmo médio de 10,6% ao ano no último triénio. Nas duas maiores cidades do país, esta dinâmica foi ainda mais saliente, com os preços dos alojamentos familiares a aumentarem, em média, 13,7% por ano na região do grande do Porto e 12,4% na área de Lisboa, desde 2020.

Portugal é, aliás, recordista na Europa e um dos maiores do mundo na subida de preços da habitação. De acordo com dados do Fundo Monetário Internacional, os preços das casas aumentaram, em termos reais (descontando a inflação), 22,3% entre 2019 e o segundo trimestre de 2023. Apenas Israel teve um aumento de preços das casas acima de Portugal desde o período pré-pandemia.

A um ritmo bem diferente da evolução dos preços e das rendas dos imóveis têm seguido os rendimentos das famílias. Segundo os dados mais recentes do Banco de Portugal, o rendimento disponível per capita aumentou, em média, 6,6% por ano desde 2020. Significa que, nos últimos três anos, o preço das casas nas grandes cidades aumentou a um ritmo duas vezes acima ao crescimento do rendimento disponível dos portugueses.

Nota: Se está a aceder através das apps, carregue aqui para abrir o gráfico.

Se a discrepância entre a subida do custo de ter casa (quer seja pela compra ou pelo arrendamento) e evolução dos rendimentos das famílias já era suficiente para adensar a degradação da acessibilidade à habitação, o cenário de crise ganhou novos contornos nos últimos anos com o despoletar de um ambiente financeiro adverso, particularmente após o verão de 2022, com a subida em flecha das taxas de juro dos novos empréstimos à habitação para máximos de 11 anos.

Esta situação foi criada no seguimento de um ciclo intermitente de dez subidas consecutivas das taxas diretoras do Banco Central Europeu, entre julho de 2022 e setembro de 2023, que provocou um incremento do preço do euro em 450 pontos base neste período, com o intuito de controlar a escalada da inflação na Zona Euro.

Na Área Metropolitana de Lisboa, nos seis anos anteriores à crise do subprime (em 2008), foram licenciados mais de 96 mil fogos de habitação nova, quase o triplo dos licenciamentos concretizados nos últimos seis anos (2018-2023).

Tudo somado, faz com que “hoje é significativamente mais difícil entrar no mercado tanto de arrendamento como de aquisição do que era há cinco ou seis anos, mesmo quando se olha para as localizações mais baratas nas áreas metropolitanas ou nas cidades de Lisboa e Porto”, como referem Hugo de Almeida Vilares e Rita Fradique Lourenço, autores do policy paper “A crise da habitação nas grandes cidades – uma análise”, publicado em julho do ano passado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS).

Segundo os investigadores, as famílias com rendimentos iguais à mediana nacional poderão ambicionar comprar uma “habitação acessível” em várias das cidades portuguesas, “mas não em Lisboa ou no Porto, dado o diferencial de preços praticados”, lê-se no estudo.

Nos últimos três anos, o custo da habitação na Área Metropolitana do Porto aumentou mais do que na Área Metropolitana de Lisboa. Enquanto as rendas e os preços das casas subiram, em média, 9,7% e 13,7% por ano, respetivamente, no Porto, em Lisboa as rendas encareceram 9,4% e os preços das casas aumentaram 12,4% por ano desde 2020.

Pressão sobre a oferta não dá tréguas

Os últimos dados da Autoridade Tributária apontam para a existência de cerca de 6,4 milhões de prédios (apartamentos e prédios em propriedade total) inscritos na matriz predial urbana com afetação habitação nos 308 municípios de Portugal no final de 2022. Trata-se de pouco mais de 92,7 mil casas face a 2017, como resultado de um ritmo de crescimento anual médio do parque habitacional de apenas 0,29%.

Para Joaquim Montezuma, professor do ISEG e sócio-gerente da ImoEconometrics, não há dúvidas de que o volume de construção de fogos neste período “ficou muito aquém das necessidades da procura em Portugal.” O docente lembra, por exemplo, que só em 2005 produziram-se cerca de 92 mil fogos, um valor idêntico ao acréscimo de prédios de habitação colocados no mercado entre 2017 e 2022.

“O número é preocupante quando colocado em contexto”, refere também Hugo de Almeida Vilares, professor da Faculdade de Economia do Porto (FEP), notando que, se no início dos anos 2000 tínhamos aumentos anuais do parque habitacional do país entre 100 mil e 120 mil casas por ano, “altura em que projetos como a Alta de Lisboa, Telheiras, Parque das Nações ganharam fôlego e forma, desde meados dos anos 2000 que assistimos a uma quebra muito substancial da oferta de novas habitações.”

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Além de se ter observado um estrangulamento do número de novas casas a chegarem ao mercado nos últimos anos, os dados do INE mostram também uma dificuldade na obtenção de licenciamentos de habitação de casas novas: se 2023 foram licenciados cerca de 31,7 mil fogos em construção nova para habitação familiar, há duas décadas, em 2003, esse número era multiplicado por quase três vezes.

Na Área Metropolitana de Lisboa, nos seis anos anteriores à crise do subprime (em 2008), foram licenciados mais de 96 mil fogos de habitação nova, quase o triplo dos licenciamentos concretizados nos últimos seis anos (2018-2023).

Na Área Metropolitana do Porto esse rácio foi mais baixo, com o licenciamento de construção nova para a habitação a passar de 63,3 mil fogos entre 2002 e 2008 para 36,2 mil euros nos seis anos antes de 2024.

Apesar de partilharem esta tendência de decréscimo do número de licenciamentos, tem-se verificado uma dinâmica distinta nas duas regiões ao longo dos últimos anos nesta matéria. Enquanto o Porto registou em 2023 um crescimento de 14% do licenciamento de construção nova e desde 2015 que não tem parado de crescer, Lisboa fechou 2023 com uma queda anual do licenciamento de construção nova pelo segundo ano consecutivo e, nos últimos cinco anos, apenas por uma vez registou uma subida do número de licenciamentos.

Isto fez com que, por exemplo, desde 2020 que a Área Metropolitana do Porto tem apresentado mais licenciamentos de construções novas para habitação do que Lisboa. A última vez que isso tinha acontecido foi há dez anos, em 2013.

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Ainda do lado da oferta a pressionar o preço das casas tem também estado a forte subida da inflação nos últimos anos que, naturalmente, se refletiu num aumento significativo dos preços de construção. Só em 2021 e 2022, os preços de construção de habitação nova aumentaram a um ritmo de 9,9% por ano.

No ano passado, os custos de construção voltaram a aumentar mas a um ritmo mais modesto, registando um incremento de 1,8% face a 2022, ficando próximo dos aumentos de 2,2% registados em 2020 e 2019.

Entre 70% a 80% dos consumidores de habitação e proprietários avalia as políticas do Estado na área da habitação como más ou muito más, e a esmagadora maioria não reconhece vantagens nos programas e medidas publicas anunciadas e em vigor para o setor.

Estudo da Habitação em Portugal 2024 da Century 21

Invariavelmente a pressionar os preços das casas está também a carga tributária associada à construção que é reconhecida como uma das mais elevadas no espaço da Zona Euro, abrangendo não só impostos diretos mas também uma multiplicidade de taxas e contribuições que incidem sobre a construção e venda de imóveis.

“Em Portugal, quando se compra casa paga-se 50% de imposto. Em Espanha paga-se 10%”, refere Hugo Santos Ferreira, presidente da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII), em entrevista ao ECO.

Um dos casos mais emblemáticos no campo tributário prende-se com a aplicação do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) a 23% sobre os custos de construção, sem uma taxa reduzida que nem sequer pode ser dedutível nas contas do construtor.

Em Portugal, a comercialização de imóveis geralmente não está sujeita a IVA, embora exista a possibilidade de optar pela sua tributação em determinadas situações. No entanto, esta opção não se aplica a imóveis destinados a habitação, cuja venda é sempre isenta de IVA, impedindo assim a recuperação do IVA incorrido durante a sua construção.

Essa situação leva a que, naturalmente, o acréscimo tributário seja empurrado para o preço final dos imóveis num valor equivalente a 23% da fatura dos custos de construção ou a 6% caso se trate de imóveis reabilitados localizados em áreas de reabilitação urbana.

A crise da habitação em Portugal está assim longe de ser resolvida com uma ou outra medida a avulso. Exige soluções multifacetadas e até de alguma complexidade. “São necessárias uma visão de longo prazo e uma abordagem integrada ao problema: a nível macro, por meio de políticas governamentais e municipais coerentes, e a nível micro, através de projetos individuais”, referem os autores do paper “A crise da habitação nas grandes cidades – uma análise” da FFMS.

O Governo procurou responder a alguns dos problemas em outubro com a aprovação do programa “Mais Habitação”, um “ambicioso plano para promover o acesso à habitação a custos acessíveis”, como classifica o Executivo, através de um investimento de 2.700 milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).

Porém, são muito mais as dúvidas que levanta do que as soluções que o programa propõe, segundo a opinião da vasta maioria dos agentes do mercado. Ainda este mês, a Century21 revelou um estudo que aponta para que entre 70% a 80% dos consumidores e de habitação e proprietários avalia as políticas do Estado na área da habitação como más ou muito más, e que a esmagadora maioria não reconhece vantagens nos programas e medidas públicas anunciadas e em vigor para o setor.

É imperativo que se tomem medidas que visem não só estimular a oferta, quer seja através da simplificação dos processos de licenciamento e da redução dos custos de construção, mas também do lado da procura, através do apoio às famílias de menores rendimentos, para garantir o acesso à habitação. E é por isso que a atual crise da habitação desafia não só os decisores políticos, mas toda a sociedade, famílias e empresas, a encontrar caminhos inovadores e justos para superar um dos mais prementes problemas do país.

  • Ana Petronilho
  • Jornalista

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