• Especial por:
  • Gonçalo Aguiar

Afinal, como funciona o travão ao preço do gás?

O mecanismo de limitação do preço do gás é positivo para o consumidor pois atenua o impacto do aumento do preço do gás natural no preço da eletricidade. A análise do especialista Gonçalo Aguiar.

Em resposta ao crescente preço do gás natural, provocado pela escassez imposta pela Rússia desde o final do verão de 2021, os governos espanhol e português decidiram intervir no mercado grossista ibérico de eletricidade (MIBEL), no passado mês de junho. A intervenção, que corresponde ao Decreto-Lei n.º 33/2022, de 14 de maio, tem o objectivo de atenuar a subida do preço da eletricidade, desconectando-o do preço do gás natural.

Como funciona a intervenção no MIBEL?

A medida funciona através de um subsídio chamado “ajuste” concedido aos produtores de eletricidade que usam gás natural. Esse subsídio é igual à diferença entre o custo de aquisição do gás natural no mercado ibérico (MIBGAS) e um custo de referência do gás estabelecido pelo decreto-lei, inicialmente de 40 €/MWh, ajustado de um fator de conversão do preço do gás para o preço da eletricidade.

  • Subsídio em €/MWh = (Preço do gás natural MIBGAS – 40 €/MWh)/0.55

Por exemplo, se o custo do gás natural for 125 €/MWh, o ajuste que as centrais a gás recebem é de 154 €/MWh de eletricidade produzida ((125-40)/0.55=154).

Quem “paga” o ajuste?

O ajuste aparece como uma parcela adicional na fatura de eletricidade dos consumidores que beneficiam da sua aplicação. Estes são:

  • consumidores expostos aos preços dos mercados grossistas, com tarifas indexadas, tipicamente consumidores industriais;
  • consumidores com tarifas fixas (não indexadas) mas que renovaram ou assinaram um novo contrato após 26 de Abril.

A pergunta que se coloca agora é: Como pode um mecanismo que é pago pelos consumidores amenizar a subida do preço da eletricidade para os mesmos? Para responder a esta pergunta é necessário entrar um pouco no detalhe de…

Como funcionam os mercados grossistas de eletricidade?

O mercado grossista de eletricidade, como qualquer outro mercado livre, funciona através do emparelhamento de ofertas de compra e venda de eletricidade (de preço e quantidade) por produtores e consumidores. A cada hora, o operador do mercado (OMIE) agrupa as ofertas por ordem de preço. O preço da eletricidade a uma certa hora, ou seja o preço de fecho de mercado, é dado pela interceção das ofertas com as procuras, como mostra o exemplo real da Figura 1 e a ilustração simplificada da Figura 2.

Toda a energia produzida é vendida aos compradores pelo preço de fecho, independente do preço de cada licitação de venda. Pode-se afirmar que o mercado remunera todos os produtores com base na oferta mais barata que consegue cobrir o consumo de todos os compradores dispostos a pagar o preço dessa oferta.

Mercado marginalista

Este modelo de mercado de eletricidade é por vezes denominado de mercado marginalista, porque os produtores tendem a fazer licitações para cobrirem o seu custo marginal, isto é, o custo variável de produção. Os produtores que licitam abaixo do preço de fecho são chamados “produtores inframarginais”.

Note-se que uma boa parte dos produtores na Figura 1 (linha verde) e na Figura 2 (barra verde), ofertam a energia a um preço perto de zero. Estes correspondem normalmente a produtores renováveis sem capacidade de armazenamento de energia e com custos variáveis de produção praticamente nulos. A licitação próxima de zero aumenta as chances de injetar energia na rede sempre que o recurso renovável (sol, vento e água) está disponível. Apesar de estes licitarem a zero, recebem o preço de fecho de mercado pela energia que produzem, como referido anteriormente. São, por isso, chamadas tecnologias “tomadoras de preço”, porque adotam o preço de outras tecnologias.

As centrais hidroelétricas com capacidade de armazenamento de água em albufeiras (a azul na Figura 2) são um caso particular das renováveis. Estas têm maior flexibilidade e podem ofertar a energia armazenada quando lhes é mais proveitoso. A estratégia de licitação conjuga vários fatores, sendo um dos mais importante a gestão dos níveis de água nas albufeiras e a expectativa de chuva futura. Num período de tempo com muita chuva, licitam a preços mais baixos, aumentando a produção para evitar encher demasiado a barragem ao ponto de ter de realizar descargas. Em períodos de seca, licitam tão alto quanto possível, perto do preço do combustível fóssil que normalmente marca o preço de fecho (gás ou carvão), para, assim, pouparem mais água.

Os produtores que têm de gastar um combustível para produzir eletricidade, como por exemplo o gás natural, licitam de forma a cobrir os seus custos com o combustível e, quando aplicável, as licenças de carbono. São estes que na maior parte das horas estabelecem o preço de fecho, pois são os que têm flexibilidade de produzir quando os recursos renováveis não estão disponíveis. São chamadas tecnologias “estabelecedoras de preço”.

Os lucros caídos do céu (windfall profits)

Ultimamente, tem-se falado de um conceito de “lucros inesperados”, referindo-se aos lucros de empresas petrolíferas que dispararam no primeiro trimestre de 2022, devido à subida da cotação do petróleo nos mercados internacionais.

No mercado da eletricidade, o mesmo efeito acontece com o aumento do preço do gás natural. Os produtores que licitaram abaixo do preço de fecho (inframarginais) e cujos custos de produção não subiram com o aumento do preço do gás porque não o usam, têm vindo a beneficiar dos preços altos de fecho do mercado da eletricidade, estabelecido pelas centrais a gás. Estas receitas inesperadas são ilustradas a sombreado amarelo na Figura 3 e têm sido aproveitadas maioritariamente pelas hidroelétricas com armazenamento e nucleares.

O efeito do mecanismo de limitação nos lucros inesperados

O subsídio/ajuste concedido às centrais a gás por intermédio do mecanismo, permitirá que estas não imputem todo o custo do gás natural nas suas ofertas de venda no mercado. Ou seja, permite às centrais a gás licitarem abaixo do preço real que licitariam sem o ajuste. Na prática, a medida resulta numa limitação do preço do gás natural para produção de eletricidade.

Note-se que as centrais a gás não são obrigadas a limitar as suas licitações, mas como funcionam em concorrência, rapidamente o seu preço de licitação convergiu para o preço da eletricidade produzida se o custo do gás natural fosse realmente o preço de referência de 40 €/MWh. Esta redução do preço da eletricidade ocorreu apesar do preço do gás ter aumentado 50% a partir da aplicação da medida (Figura 4).

As curvas de oferta e procura depois da aplicação do mecanismo de limitação ficam semelhantes à Figura 2, e consequentemente os lucros caídos do céu dos produtores inframarginais desaparecem. Sobrepondo o custo do ajustamento ao preço da energia vendida pelas centrais a gás, obtém-se a Figura 5.

Apesar de ser o consumidor a pagar o custo de ajustamento na sua fatura, o custo é menor do que o benefício trazido pelas poupanças resultantes da perda de receitas dos produtores inframarginais. Isso é observável na Figura 6, colocando lado a lado as áreas que representam o custo do ajustamento da Figura 5 e as receitas inesperadas da Figura 3. Este pagamento do custo por parte dos consumidores é na realidade apenas um equilíbrio contabilístico. Quem paga na realidade são as hídricas e nucleares com perdas de receita.

Está subjacente na Figura 5 que o custo do ajustamento é proporcional à quantidade de energia produzida com gás. Quanto menos energia é produzida com gás, maior o ganho final para o consumidor com o mecanismo.

A pergunta que se pode colocar é se haverá algum cenário em que o custo do ajustamento é maior que as receitas inesperadas. A resposta é não, porque haverá sempre energia produzida por produtores que não gás natural. Mesmo que toda a energia fosse produzida com gás natural, o custo final para o consumidor seria igual antes e depois da aplicação da medida, nunca maior. O mecanismo é, portanto, no pior caso neutro para o consumidor.

Terá a medida custos no futuro?

Em declarações à RTP2, o presidente da ERSE Pedro Verdelho, garantiu que não existirão impactos na dívida tarifária com este mecanismo, pois os pagamentos do ajustamento são realizados na semana seguinte.

O presidente da ERSE também afirmou que apenas 30% dos consumidores estão abrangidos pelo mecanismo nos dias de hoje. Espera-se que este número aumente à medida que os contratos antigos se renovem e novos contratos sejam realizados. Isto significa que o custo com o passar do tempo será diluído por mais consumidores.

Concluindo…

Em suma, o mecanismo de limitação do preço do gás é positivo para o consumidor pois atenua o impacto do aumento do preço do gás natural no preço da eletricidade. Apesar de ser evidente que os preços da eletricidade estão a aumentar e vão continuar a aumentar, principalmente nos clientes expostos ao mercado grossistas (industriais), o aumento seria pior sem o mecanismo. Falta agora analisar se existem consequências não-intencionadas que podem estar a ser causadas pelo mecanismo…

  • Gonçalo Aguiar
  • Engenheiro Eletrotécnico

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