Portugal vai acolher a fase final do Mundial em 2030, juntamente com Espanha e Marrocos. A história mostra que o torneio costuma ser um mau negócio para o organizador. Aprendemos com o Euro 2004?
Em novembro do ano passado, no arranque do bilionário Mundial do Catar, a Economist colocou a seguinte questão: “O Campeonato do Mundo é um grande desperdício de dinheiro?”
Para Portugal, que vai ser um dos anfitriões do Mundial em 2030 com Espanha e Marrocos, a pergunta colocada pela revista britânica devia merecer uma reflexão coletiva. No Euro 2004, os custos com as obras de alguns estádios derraparam 200% face ao previsto inicialmente e alguns dos recintos são hoje o que se chama de “elefantes brancos”. “Como investimento, os megaeventos desportivos são quase sempre um fracasso”, concluiu a Economist (acesso pago, conteúdo em inglês).
Organizar o Mundial está longe de ser um negócio lucrativo. É isso que mostram os números do estudo “O défice estrutural dos Jogos Olímpicos e dos Mundiais”, da autoria de Martin Müller, David Gogishvili e Sven Daniel Wolfe, do Departamento de Geografia e Sustentabilidade da Universidade de Lausanne, na Suíça, em que a publicação britânica se baseou para escrever o seu artigo.
Desde o Mundial de Inglaterra em 1966, apenas uma edição da competição gerou mais receitas do que despesas: o Rússia 2018 pode reclamar o título de único Mundial com um saldo final positivo, na ordem dos 240 milhões de dólares.
Do outro lado, e sem contar com o megalómano Mundial catari, que depois dos pesados investimentos das autoridades será considerado o torneio mais caro de sempre, o Japão/Coreia do Sul 2002 foi o que deu o maior prejuízo: -4,8 mil milhões de dólares.
Para estas contas, os autores consideraram os custos e as receitas diretamente relacionados com a organização da prova, deixando de lado outros aspetos que também são geralmente associados aos megaeventos, como o impacto ao nível do turismo e da projeção internacional ou da pegada ambiental e os investimentos nas infraestruturas públicas como o sistema de metro ou nas cidades, por exemplo — aspetos que vão ser analisados num novo projeto que este grupo de investigadores irá trabalhar a partir de fevereiro, sobre a evolução da sustentabilidade económica, social e ambiental de mais de 20 grandes eventos desportivos desde 1990.
Assim, do lado dos custos, foram contabilizados as despesas com a construção e a renovação dos estádios e a própria organização. E como receitas foram tidos em conta os rendimentos provenientes da venda de bilhetes e dos acordos comerciais relativos aos patrocínios e aos direitos de transmissão televisiva.
As receitas foram subindo progressivamente de edição para edição. Mas dificilmente atingiram um nível suficiente para cobrir as despesas do torneio. O Japão/Coreia 2002 teve custos de mais de sete mil milhões de dólares (o mais dispendioso até ao Catar 2022) e receitas de apenas 2,4 mil milhões. Na exceção russa de 2018, as receitas do torneio ascenderam a 5,2 mil milhões e foram suficientes para os custos de cinco mil milhões.
Aprendemos com Euro 2004?
Para David Gogishvili, um dos autores do estudo, o maior risco para um país na organização da fase final de um Mundial está sobretudo relacionado com a construção dos estádios e os seus custos.
“Os megaeventos são conhecidos, infelizmente, por ultrapassarem significativamente o orçamento e, muitas vezes, por causa da construção dos recintos desportivos. Em muitos casos, os custos aumentaram em 100% ou 200%”, adianta o investigador ao ECO.
Gogishvili não se referiu diretamente ao Euro 2004, organizado por Portugal, mas podia tê-lo feito. A auditoria do Tribunal de Contas de 2005 revelou que os custos com os estádios de Braga, Guimarães, Aveiro, Coimbra, Leiria e Algarve derraparam em 230% face ao que estava inicialmente previsto, tendo custado ao erário público mais de 320 milhões. Com os estádios do Dragão, Bessa, Alvalade e Luz os encargos com os recintos do Euro 2004 somam os 450 milhões. E isto sem contar com as despesas relacionadas com as acessibilidade e o estacionamento nas áreas circundantes.
Se os dez estádios tiveram uma boa utilização durante o mês em que se realizou a prova, atualmente só meia dúzia recebe regularmente jogos do principal escalão de futebol e apenas alguns conseguem encher totalmente nos dias de jogo. Outros estão esquecidos.
“Se não é necessário um estádio com 65 mil lugares, não aumente a capacidade dos seus estádios e mantenha o que já está feito. O risco de ter instalações desportivas subutilizadas após o fim do torneio é grande. Portugal já tirou algumas lições do Euro 2004 que deverá evitar repetir“, diz Gogishvili.
Para o Mundial 2030, a bola deverá rolar apenas em três campos portugueses — do Benfica e Sporting, em Lisboa, e do FC Porto, que têm mais de 40 mil lugares e já preenchem esse requisito da FIFA — o que poderá ser um fator de mitigação deste risco. E também do risco relacionado com o custo de oportunidade.
Os fundos públicos são limitados e implicam escolhas políticas. Megaeventos como o Mundial desviam recursos que poderiam ser destinados para melhorar a vida das pessoas, como a saúde pública ou educação. Ou para minimizar impacto que as infraestruturas poderão ter no quotidiano dos locais e na pegada ambiental que deixa.
“Em alguns casos [a construção de novas infraestruturas] pode levar ao deslocamento de residentes. Depois temos também deslocamentos causados pela gentrificação que advém do investimento em certas áreas que conduz ao aumento dos preços imobiliários. Havendo um aumento do custo com os imóveis, pode se tornar inacessível para as pessoas que vivem nessas áreas ou para as empresas que trabalham na área”, explica Gogishvili.
O risco de ter instalações desportivas subutilizadas após o fim do torneio é grande. Portugal já tirou algumas lições do Euro 2004 que deverá evitar repetir.
Partilhar riscos e receitas
Até aos dias de hoje, apenas um Mundial apresentou contas positivas, enquanto a grande maioria esteve perto de se revelar uma “pequena tragédia” para os países que receberam o evento. Se o Japão/Coreia do Sul 2002 e o África do Sul 2010 não são considerados “grandes fracassos”, é por pouco.
“No geral, uma das principais razões pelas quais os Mundiais não são lucrativos para o organizador tem a ver com a forma como as receitas são distribuídas”, aponta David Gogishvili.
“Embora a FIFA possa insistir e fazer campanha pelo fair-play dentro das quatro linhas, não parece importar-se com o facto de no atual jogo de megaeventos as cartas estarem poderosamente a seu favor”, considera.
Com grande parte das receitas a serem originadas com a venda dos direitos de transmissão televisiva dos jogos, isso significa que a maior fatia dos rendimentos gerados pelo Mundial vai para os bolsos da FIFA, que é a entidade que detém esses direitos, enquanto quem organiza toma os riscos.
“Os países organizadores podiam pressionar por uma mudança na forma como as receitas são distribuídas. (…) Precisam de fazer lobby para uma partilha mais equitativa das receitas e dos riscos”, sugere o investigador.
Os países organizadores podiam pressionar por uma mudança na forma como as receitas são distribuídas. (…) Precisam de fazer lobby para uma partilha mais equitativa das receitas e dos riscos.
De alguma forma, a partilha dos riscos e dos custos com o Mundial 2030 já está assegurada, de acordo com David Gogishvili. Pela primeira vez o torneio será jogado em três continentes, num novo modelo cuja eficiência ainda não está comprovada, ainda assim: a América do Sul vai receber os primeiros jogos, enquanto resto do campeonato será jogado na Europa (Portugal e Espanha) e África (Marrocos).
“Partilhar a organização do Mundial ajuda a baixar os custos do evento. Mas penso que a forte cultura futebolística dos países envolvidos minimiza o risco de um mau negócio“, atira David Gogishvili, apontando como exemplo o facto de os estádios do Real Madrid e do Barcelona estarem a ser renovados mesmo antes da atribuição da fase final aos espanhóis.
Seja como for, é importante ter em conta que, no final do dia, “não é o futebol que vai salvar a economia”, como disse o ministro da Economia português, António Costa Silva.
“É importante acolher eventos que gerem benefícios financeiros e outros (se for o caso), mas não devem ser vistos como a última solução para resolver problemas económicos ou alcançar os objetivos económicos de um país”, refere David Gogishvili.
“Os potenciais anfitriões devem apostar no evento se perceberem que ele pode ser utilizado para resolver os seus objetivos, e não o contrário, como muitas vezes acontece“, remata o investigador.
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