Coliderança. Duas cabeças podem ser melhor que uma, mas ainda é exceção

Galp optou por sistema de coliderança. Uma opção de gestão pouco comum, mas que já conta com alguns casos de sucesso, nacionais e internacionais. Perfil cooperativo é essencial, dizem especialistas.

Bernardo Diniz de Ayala, sócio da Uría Menéndez, fala-nos sentado do seu gabinete, imediatamente abaixo do do colega António Villacampa, com o qual partilha a liderança desta sociedade em Portugal. “Está aqui a dois metros. Qualquer assunto, é só eu ir lá, ou ele vir cá”, indica Ayala, como medida de proximidade.

“O António e eu falamos sempre que necessário. Às vezes todos os dias da semana, hora sim hora não. Outras vezes, temos duas semanas em que nem temos de falar porque as coisas estão a rolar”, continua o co-managing partner da sociedade. Há ainda outro encontro sagrado: um jantar por mês, no qual ambos se debruçam sobre assuntos profissionais, mas extravasam também para o lado pessoal. “Hoje em dia, somos amigos”, considera Bernardo Diniz Ayala.

Bernardo Ayala e Antonio Villacampa, sócios da Uría Menéndez-Proença de Carvalho, em entrevista ao ECO/Advocatus - 06DEZ22
Bernardo Ayala e Antonio Villacampa, sócios da Uría Menéndez-Proença de CarvalhoHugo Amaral/ECO

A Uría Menéndez inaugurou este modelo de gestão em 2018. A proposta veio do Conselho de Administração, depois de ouvidos 25 a 30 sócios sobre como viam o futuro da empresa. A sociedade queria contar com um sócio de raiz espanhola e outro com raízes portuguesas, já que a Uría se considera um escritório ibérico. “Temos duas pessoas à frente do escritório, mas na prática é como se tivéssemos apenas uma”, afirma Bernardo Ayala.

“Ao longo dos últimos sete anos e 14 dias não houve uma única dificuldade a que se possa chamar dificuldade”, considera o mesmo sócio. Existiram divergências de opinião e lugar para debate, mas não regista nenhum “momento de tensão ou divergência acentuada que pudesse colocar em dúvida o que quer que fosse”. Hoje, qualquer uma das 150 pessoas que trabalha no escritório da Uría em Portugal “sabe que se falar com um para ter uma orientação, não vale a pena falar como outro, que vão ter a mesma”, garante o gestor.

Uma experiência igualmente positiva é relatada pelos managing partners da SRS Legal, César Sá Esteves e Octávio Castelo Paulo, que partilham a gestão desta sociedade desde janeiro do ano passado. E, neste caso, a iniciativa de subirem os dois à liderança veio de ambos, que conversaram entre si e depois apresentaram a proposta aos restantes sócios. Foram eleitos por unanimidade. “Nenhum de nós queria ficar totalmente afastado da sua prática e isso não era compatível com a função de managing partner a tempo inteiro”, explica Castelo Paulo.

César Sá Esteves e Octávio Paulo, managing partners da SRS Legal, em entrevista ao ECO/Advocatus - 22NOV23
César Sá Esteves e Octávio Paulo, managing partners da SRS LegalHugo Amaral/ECO

No entender dos managing partners da SRS Legal, suceder a um líder que “impregnou com o seu carisma a instituição”, Pedro Rebelo de Sousa, “é um desafio acrescido”. Neste sentido, “haver bicefalia vai trazer um reforço de legitimação para os novos CEO”, entende César Sá Esteves.

Uma escolha incomum, mas com bons exemplos

Apesar de só ter experiência direta na sociedade de advogados, Bernardo Ayala acredita que é um modelo “aplicável a qualquer estrutura”. Octávio Castelo Paulo partilha da opinião de que este modelo se pode aplicar em mais setores com sucesso: “É pouco usado mas não é absolutamente original, tem potencial para ser usado em diferentes organizações e setores”. Na sua opinião, depende do momento em que a organização está e o que pretende.

Os especialistas de governança consultados pelo ECO/Capital Verde afirmam que, apesar de existirem casos conhecidos de coliderança, não são comuns. Geralmente, é adotado em situações muito específicas, como quando dois fundadores ocupam os lugares de topo ou quando duas empresas se fundem. É mais comum no mundo germânico, indica Maria da Glória Ribeiro, fundadora e gestora da Amrop, empresa dedicada ao recrutamento no mundo corporativo.

Empresas com modelo de coliderança geraram retornos médios para os investidores de 9,5%, “significativamente melhor” que a média de 6,9% registada nos respetivos índices bolsistas, afirma a Harvard Business Review.

Um artigo da Harvard Business Review, de 2022, que estudou 87 empresas cotadas cujos líderes se identificam como co-CEO, deteta que, durante os respetivos mandatos, estas empresas geraram retornos médios para os investidores de 9,5% – “significativamente melhor” que a média de 6,9% registada nos respetivos índices bolsistas. Cerca de 60% das empresas lideradas por co-Ceo apresentaram um desempenho superior ao do mercado, conclui ainda o estudo. O tempo de permanência destas lideranças é semelhante ao de uma liderança tradicional, única. O artigo apressa-se a ressalvar que os dados são poucos (de apenas 100 empresas com este perfil em 25 anos), pelo que deve existir cautela antes de uma empresa se lançar neste regime. No entanto, “o modelo de co-CEO merece um olhar renovado e mais próximo”, lê-se no artigo.

Em Portugal, além do anúncio recente da Galp de que teria, pela primeira vez, dois CEO ao leme, e dos casos das sociedades aqui descritos, já existiu uma coliderança entre as grandes empresas cotadas. Em 2015, a Altri anunciou que Paulo Fernandes, na altura chairman e CEO, iria dividir as funções executivas com João Borges de Oliveira, o vice-presidente. Cinco anos depois, os co-CEO passaram a não-executivos e deram lugar a José Soares de Pina, que assumiu o cargo de CEO, e conta com Carlos Van Zeller e Silva como vice-CEO e COO (responsável pelas operações).

Lá fora, os exemplos multiplicam-se. Na Netflix, em 2020, Reed Hastings e Ted Sarandos partilharam a liderança. Em 2023, Hastings afastou-se do cargo, deixando a liderança, ainda dual, nas mãos de Sarandos e Greg Peters. Sarandos distingue-se pela gestão da parte criativa, tendo assumido um papel relevante na escolha dos conteúdos para a plataforma de streaming, enquanto Peters traz a experiência de COO, relata o site especializado CEO Today. Ainda no mundo tecnológico, as empresas Salesforce, Oracle, SAP e BlackBerry experimentaram co-lideranças, mas todas acabaram por abandonar este sistema.

Galp: uma experiência temporária

Na semana passada, a Galp anunciou que a sua comissão executiva iria passar a ser chefiada por Maria João Carioca, a anterior responsável pelas finanças neste órgão (CFO), e pelo administrador João Diogo Marques da Silva, até agora vice-presidente executivo para a área comercial. A nomeação vem na sequência da saída de Filipe Silva, que apresentou a demissão na sequência de uma investigação interna sobre um relacionamento com uma diretora de topo, noticiada pelo ECO.

Os co-CEO da Galp, Maria João Carioca e João Diogo Marques da Silva.

Sobre este caso em particular, os especialistas em governança ouvidos pelo ECO/Capital Verde apontam na mesma direção: acreditam que a solução, apresentada como interina, deverá de facto manter-se por um tempo limitado, e acabar por ser substituída por um novo CEO, único, e provavelmente externo à empresa.

“A intenção [da nova solução] é estabilidade” até novo desfecho, diz Maria João Guedes, para depois alertar que, neste caso “vão ter de ser mesmo rápidos” a encontrar a solução definitiva, de forma a abalar a confiança do mercado ao mínimo. “Nenhum processo de escolha de CEO é mais breve que dois a três meses”, indica Maria da Glória Ribeiro. Sobre a solução da Galp, a professora do ISEG acrescenta que “tentar [o modelo de coliderança] é arrojado, mas pode ser interessante especialmente porque a empresa está numa fase de mudança, de transição energética”. “Pode ser uma lufada de ar fresco e indicar um aspeto de modernidade”, considera. Pitta Ferraz alerta que, tendo em conta o tempo limitado que se espera que os dois CEO estejam em funções, é importante que tenham sido deixadas muito claras as expectativas em relação a cada um.

De qualquer forma, olhando para a reação pouco expressiva na bolsa de valores em relação a este evento, e também ao historial de mudança de CEO (quatro nos últimos dez anos), a professora do ISEG acredita que “a Galp não é tão associada ao CEO. A figura da chairperson [Paula Amorim] é mais forte”.

É preciso perfil e cooperação

Uma criatura com duas cabeças tanto pode ser um monstro como pode ser um génio. Depende de como as duas cabeças trabalham”, ilustra Duarte Júlio Pitta Ferraz. João Moreira Rato acredita que o sucesso estará relacionado com a personalidade das pessoas: “Não é uma situação inerentemente estável, mas depende se os gestores são mais competitivos ou cooperativos”. A co-liderança só funciona se ambos os indivíduos tiverem uma muito boa relação se um não tiver um ego superior ao outro, e se houver respeito, partilha e capacidade de compromisso de ambas as partes, acrescenta Maria João Guedes.

Uma criatura com duas cabeças tanto pode ser um monstro como pode ser um génio. Depende de como as duas cabeças trabalham.

Duarte Júlio Pitta Ferraz

Sócio da Ivens Governance Advisors

Bernardo Diniz Ayala acredita que o modelo pressupõe que cada sócio-diretor prescinda do seu ego, que exista interação e capacidade de ouvir. “Desde que as características estejam lá, o modelo funciona bem”. Enumera três princípios fundamentais: garantir o melhor interesse da firma (a curto, médio e longo prazo); que exista uma lealdade entre os gestores e que a lealdade seja “temperada” por um controlo e questionamento mútuo. “Quando entendo que o António está a ferir uma linha que não é a melhor, digo-o frontalmente. E o mesmo no sentido oposto”, conta Ayala.

António Villacampa está na Uría desde 2002 e Bernardo Diniz Ayala chegou em 2008, pelo que já se conheciam, e tinham inclusivamente trabalhado juntos. “Intuo que tudo isso foi ponderado”, diz Ayala. Agora, passados oito anos de cogestão, o alinhamento já tem também uma componente intuitiva, uma vez que os sócios da Uría se conhecem o suficiente para terem presente o que é importante para cada um. “Respeitamos muito as diferenças. Sabemos onde elas existem”, afirma Ayala.

“Se as pessoas tiverem essa capacidade de alinhamento, [a coliderança] é mais robusta”, concorda Octávio Castelo Paulo, que acredita que deve existir um “espírito de missão” para encontrar as melhores soluções. César Sá Esteves afirma que o desafio deste modelo de gestão é precisamente chegar a um compromisso. “Somos pessoas diferentes, com antecedentes, vivências pessoais e profissionais diferentes”. Mas, simultaneamente considera a necessidade de encontrar patamares de convergência a maior vantagem do modelo, já que permite uma visão mais rica e complementar. “Dá mais trabalho mas as soluções são de implementação mais fácil e eficaz”, pontua.

Duarte Júlio Pitta Ferraz afirma que pode ser difícil adotar este modelo, para organizações que queiram uma resposta mais rápida. Maria João Guedes ressalva ainda que uma gestão bicéfala dá menos destaque à restante Comissão Executiva.

A principal vantagem do modelo é assegurar uma cobertura adequada dos diferentes temas para a empresa”, entende João Moreira Rato. Ao contrário do que sucedeu na gestão da SRS Legal, na Uría Menendez dividiram-se pelouros. Do lado de Ayala ficam pastas como os recursos humanos, relações internacionais e desenvolvimento de negócio. António Villacampa tem sob a sua alçada as áreas de advocacia e das finanças. “Num escritório com esta dimensão, ajuda ter divisão de tarefas. Mas quando um vai de férias, o outro tem a informação toda e trata das suas áreas”, explica Bernardo Ayala.

Existem ainda outras questões que podem ser importantes para que o sistema de cogestão vingue. É essencial que o restante conselho de administração respeite de igual forma ambos os CEO, observa Maria João Guedes. Além de uma boa comunicação, é necessário definir quais as competências de cada elemento e até ter linhas guia para o processo de decisão, sobretudo no caso de conflito, conclui.

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