Desde 1974 que Portugal tem remodelado tudo, do PIB aos diplomas, embora comprar casa continue a ser uma missão quase impossível. As conquistas e os desafios criados pelos Cravos de Abril.
Ao longo das últimas cinco décadas, a sociedade e a economia nacional têm assistido a uma onda de transformações. A conquista da liberdade e da democracia no 25 de Abril de 1974 não pôs apenas fim à ditadura, como lançou também as bases para uma série de reformas que moldariam o Portugal moderno.
Economicamente, o Produto Interno Bruto (PIB) dobrou a cada sete anos, apesar da taxa de crescimento real média ter sido modesta, de apenas 1,9% ao ano. A gestão da dívida pública e das contas públicas foi sempre uma dor de cabeça, com a dívida a crescer sempre mais que o PIB e as contas públicas a apresentarem persistentemente um défice orçamental — mesmo depois de Portugal aderir à União Europeia e desde então ganhar o estatuto de beneficiário líquido de recursos de Bruxelas.
Socialmente, o país viu uma inversão demográfica ao longo do último meio século, com um envelhecimento acelerado da população e constantes desafios na sustentabilidade dos sistemas de segurança social. Notáveis progressos foram feitos na saúde, com uma drástica redução na mortalidade infantil, e na educação, com um aumento exponencial no número de estudantes com o ensino superior.
Contudo, os desafios persistem, especialmente no mercado habitacional, onde a disparidade entre os preços das casas e os salários continua a aumentar, tornando a compra ou o arrendamento de uma casa uma tarefa hercúlea para muitas famílias. Estas transformações refletem o legado misto do 25 de Abril, marcado por conquistas significativas e desafios contínuos.
Crescimento ao solavancos
Ao longo dos últimos 50 anos, a economia nacional tem sido palco de altos e baixos, com o Produto Interno Bruto (PIB) e o PIB per capita a dobrarem, em média, a cada sete anos, como resultado de uma taxa de crescimento média de 10,1% e 10,3% por ano, respetivamente. No entanto, isto não significa que a economia tem sido um poço de vitalidade. Neste período de meio século de história, o PIB apresentou uma taxa de crescimento real média de apenas 1,9% por ano, e grande parte adveio da década de 1980 e 1990, quando a economia cresceu a um ritmo médio anual de 3,4% e 3%, respetivamente.
A entrada no século XXI marcou o início de uma era particularmente turbulenta para Portugal. Entre 2001 e 2013, o país viveu uma verdadeira montanha-russa económica, com a taxa de crescimento média anual do PIB a estagnar num redondo zero, tendo estado em 38% destes 13 anos em contração económica, como resultado de cinco anos de taxas de crescimento real negativas (2003, 2009, 2011, 2012 e 2013).
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Explosão da dívida
A dívida pública tem sido um “bicho” difícil de domar por parte de todos os governos. Desde 1974, a dívida pública cresceu a um ritmo de 15,1% por ano, cerca de 5 pontos percentuais a mais que o PIB a preços correntes. A subida foi particularmente marcante nos primeiros 14 anos após a Revolução dos Cravos, com apenas por uma ocasião (em 1980) o PIB a preços correntes a registar um crescimento anual acima do crescimento da dívida. O mesmo voltou a suceder entre 2001 e 2014 (só em 2007 o PIB cresceu mais que o stock da dívida pública), com o nível de endividamento do Estado a atingir um valor recorde até então, equivalente a 132,9% do PIB, em 2014.
Esta tendência mudou a partir de 2015, com o PIB a crescer gradualmente a taxas superiores ao aumento da dívida, com exceção do ano de 2020, como resultado da pandemia Covid-19, em que a economia afundou 6,5% e a dívida engordou 8,2%. Esta mudança de ciclo permitiu que, no final do ano passado, o rácio da dívida face ao PIB fica-se abaixo dos 100% pela primeira vez em 14 anos.
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Contas públicas no vermelho
Há meio século que Portugal se debate para manter as contas das Administrações Públicas equilibradas. Depois de em 1974 até ter fechado o ano com um excedente orçamental de 0,4% do PIB, apenas por mais duas ocasiões Portugal foi capaz de fugir a um défice orçamental. Primeiro em 2019, pela mão do então ministro das Finanças Mário Centeno, com as receitas a superarem em 0,1 pontos percentuais as despesas, e, mais recentemente, em 2023, pela batuta de Fernando Medina, com o país a alcançar um excedente orçamental de 1,2% do PIB.
O pior ano das contas públicas portuguesas foi em 2010, altura da crise das dívidas soberanas, em que o défice atingiu os 11,4% do PIB. No entanto, o período mais negro dos últimos 50 anos ocorreu durante toda a década de 1980. Naquele período, marcado pelo resgate do país pelo Fundo Monetário Internacional em 1983 (depois de uma primeira “visita” em 1977), as contas públicas apresentaram um défice médio de 6% PIB, tendo como ponto mais negro o ano de 1980, em que o défice subiu para 10,9% do PIB.
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Cheques de Bruxelas
Desde a adesão de Portugal à União Europeia, há 37 anos, que o país tem sido um beneficiário líquido de fundos europeus. Entre 1986 e 2023, Portugal contabilizou transferências líquidas do espaço europeu de mais de 84 mil milhões de euros, distribuídos ao longo de vários quadros comunitários. O primeiro foi o QCAI, que deu lugar a mais dois com o mesmo nome. Depois veio o QREN, o Portugal 2020 (que ainda não está totalmente executado) e está agora em vigor. Mas, além disso, Portugal poderá receber 22,2 mil milhões de euros se executar na totalidade as reformas e investimentos com que se comprometeu em Bruxelas no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência.
O Tratado de Adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) foi assinado a 12 de junho de 1985 no Mosteiro dos Jerónimos pelo então primeiro-ministro Mário Soares e o presidente da Comissão Europeia Jacques Delors. O pedido de adesão foi feito em março de 1977 e só após oito anos de negociações foi possível entrar formalmente — a 1 de janeiro de 1986.
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Transformação da economia
No espaço de meio século, a economia nacional transformou-se significativamente. A agricultura e a indústria deixaram de ser responsáveis por 22% e 35%, respetivamente, da riqueza criada no país em 1960, para hoje, em conjunto, representarem menos de um quarto do valor acrescentado bruto (VAB). Em oposição verificou-se uma subida da importância do comércio e dos restantes serviços, que hoje representam 88% do VAB. Estas mudanças foram acompanhadas de perto por grandes conquistas no mundo do trabalho, como a implementação do salário mínimo nacional, os subsídios de Natal e de férias, o direito à greve e a entrada da mulher no mercado de trabalho: em 1970, segundo dados da Pordata, apenas 25% das mulheres com 15 ou mais anos trabalhavam. Em 2021, esse valor era de 46%.
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Mais velhos e mais cosmopolitas
Em meio século, a pirâmide demográfica praticamente inverteu-se. Apesar da população em Portugal ter crescido 18% desde 1974, passando de 8,8 milhões para 10,4 milhões, hoje há menos 45% jovens do que há 50 anos e quase triplicou o número de idosos. Num ranking europeu que ninguém pediu, Portugal saiu na frente como o país onde o grupo sénior mais cresceu, ao mesmo tempo que ficou no pódio dos que mais viram a sua população infantil e juvenil desaparecer, com a taxa de natalidade a cair ano após ano. Se antes éramos conhecidos por ter poucos idosos por cada jovem, agora somos quase campeões no inverso: saltámos de primeiro com menos idosos para segundo com mais. De camisola amarela a lanterna vermelha, no “Tour” demográfico europeu, Portugal redefiniu o envelhecimento com um toque de nobreza.
Esta tendência sentiu-se também ao nível do rácio de dependência de idosos — proporção entre a população com mais de 65 anos e a população em idade ativa (15-64 anos): se em 1974 haviam 13 idosos por cada 100 pessoas em idade ativa, no final de 2022 esse rácio triplicou para 38 idosos por cada 100 ativos. E não deverá ficar por aqui. Segundo as últimas previsões da Comissão Europeia espelhadas no relatório “Ageing Report 2024”, até 2050 esse rácio deverá continuar a aumentar, contabilizando-se dentro de 26 anos 69 idosos por cada 100 pessoas em idade ativa.
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Luta por uma habitação digna
Antes de 1974, morar em Portugal podia ser sinónimo de um exercício de sobrevivência diário. Segundo o Censo de 1970, mais de dois terços das casas não tinham duche ou banheira e mais de metade vivia à margem do luxo de abrir a torneira e encontrar água canalizada. Avançamos para 2011 e o retrato é outro: 98% das casas já dispunham não só de água e eletricidade, como também de saneamento básico, algo impensável cinco décadas antes. Mas não se pense que o caminho foi sempre a subir. Em 1981, ainda se contavam mais de 46 mil “casas” que eram pouco mais do que barracas, abrigando cerca de 126 mil pessoas. Em 2021, este número reduziu drasticamente para 4 mil alojamentos do género, com 11 mil moradores. É uma melhoria, sim, mas não uma vitória completa.
Nos últimos 50 anos, o número de residências principais duplicou, passando de 2,7 milhões em 1970 para quase 6 milhões no final de 2021. O mesmo se passou com a densidade de alojamentos familiares, com o número de casas a passar de 2,7 unidades por quilómetro quadrado para quase 6. Porém, o cenário atual do mercado imobiliário é uma amarga lembrança de que nem tudo acompanha a inflação da qualidade de vida. Na última década, os preços das casas dispararam e os salários mostraram-se incapazes de acompanhar a onda. Hoje, cerca de 70% dos portugueses são proprietários da casa onde vivem, mas 18% não conseguem aquecer as suas casas de forma adequada e 29% enfrentam uma carga financeira pesada com custos de habitação.
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Democratização da saúde
A saúde emergiu como uma das vitórias mais brilhantes da democracia portuguesa. A generalização do acesso à saúde, um feito apenas alcançado em democracia, não só aumentou a esperança média de vida, como também elevou a qualidade no acesso aos serviços de saúde. Se há uma vitrine onde esta transformação brilha, é na notável melhoria dos cuidados de saúde infantil e maternos. Em 1974, Portugal detinha um recorde sombrio na União Europeia: era o país com a maior taxa de mortalidade infantil, com 38 mortes por cada 1.000 nados vivos — bem acima da média europeia de 21. Em 2022 o cenário é radicalmente diferente. Portugal figura agora entre os dez melhores, com uma taxa de mortalidade infantil de apenas 2,6‰, superando a média europeia de 3,3‰.
Este avanço monumental também se reflete nos partos, destaca a Pordata. Em 1970, menos de metade dos partos ocorriam em estabelecimentos de saúde, mas já em 1975 este número saltou para 61%. Hoje, é quase uma certeza que uma criança portuguesa venha ao mundo num ambiente hospitalar.
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Educação para todos
Em 1960, um terço dos portugueses não sabia ler nem escrever. Uma década depois, os números continuavam a ser nebulosos, com o país a apresentar uma taxa de analfabetismo de 25,7%, o correspondente a 1,8 milhões de pessoas — sendo que 64% eram mulheres. Hoje, a percentagem de iletrados é de apenas 3,1%, como resultado de um aumento exponencial de jovens a frequentar o ensino. A Revolução dos Cravos não só trouxe liberdade política, como também revolucionou a educação. Até então, a maioria das crianças limitava-se a fazer um singelo percurso de quatro anos. Mas com a democratização do ensino, Portugal viu uma verdadeira explosão da taxa de escolarização: atualmente, mais de 90% das crianças até ao ensino secundário frequentam a escola.
As conquistas de Abril na educação fazem-se também notar no ensino superior. Outrora um clube exclusivo para menos de 1% da população, as universidades e os politécnicos têm agora as portas abertas a 20% dos portugueses, com as mulheres a representarem a maioria dos estudantes. Segundo dados da Pordata, em 2023, havia 446 mil alunos inscritos no ensino superior, cinco vezes mais do que os 82 mil estudantes registados em 1978. De uma minoria a uma nação de graduados, Portugal transformou o acesso à educação num dos seus maiores legados do pós-25 de Abril.
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Crise da abstenção eleitoral
Desde que os cravos coloriram a revolução em 1974 e Portugal se abriu para a democracia que os portugueses parecem ter entrado numa espécie de relação complicada com as urnas. Ao longo das 75 eleições realizadas nos últimos 50 anos, de alguma forma o entusiasmo inicial com as eleições legislativas de 1975, onde apenas 8,5% dos eleitores decidiram ficar em casa, foi-se desvanecendo. Talvez o romance inicial com a liberdade de escolha tenha dado lugar à rotina, ou talvez o menu eleitoral tenha perdido o seu apelo, mas o certo é que, atualmente, mais de 40% dos eleitores preferem fazer qualquer coisa menos votar.
As razões para este “fantasma da abstenção” podem ser muitas e variadas. Talvez os portugueses sintam que os seus votos não mudam o enredo da política nacional, ou talvez os políticos não tenham conseguido manter a chama da paixão eleitoral acesa. As campanhas parecem mais do mesmo e os slogans políticos ressoam como linhas esquecidas de um guião gasto. No entanto, há sinais de que nem tudo está perdido. As últimas eleições legislativas, realizadas a 10 de março, até mostraram um vislumbre de esperança, registando a taxa de afluência mais elevada desde 1995. Ainda assim, a abstenção manteve-se teimosamente acima dos 40%. Este paradoxo eleitoral sugere que, embora alguns se sintam reacendidos pelo dever cívico, uma parte significativa dos eleitores ainda prefere manter distância.
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