Construção: Setor com salários a subir “de forma acelerada”, mas onde faltam 80 mil trabalhadores

Os portugueses continuam a procurar melhores condições nas obras lá fora. O setor diz que solução passa por atrair jovens e contratar mão-de-obra estrangeira, apesar de ser menos qualificada.

“Não planeio voltar para o estrangeiro, mas…”. Aos 52 anos, José Gouveia deixa em aberto a hipótese de voltar a trabalhar fora de Portugal. Foi assim durante 17 anos, enquanto trabalhou na construção civil. Em 2004 partiu para Espanha. “As despesas foram aumentando e tinha dois filhos pequenos, queria dar-lhes o melhor para poderem estudar”, conta ao ECO, explicando que “lá fora ganhava mais”. Depois do país vizinho, somaram-se outros: Angola, Alemanha, Áustria, Bélgica e, por fim, França, onde esteve cinco anos e de onde regressou em 2021.

José Gouveia sempre trabalhou na parte da cofragem e carpintaria, trata das “vigas, pilares, caixas de elevadores ou escadas”. Em 2004, em Portugal, ganhava cerca de 2,5 euros a três euros à hora. “Fui para Espanha ganhar o triplo”, recorda. Atualmente, a trabalhar novamente no país natal, recebe cerca de 7,5 euros à hora, enquanto em França recebia dez euros.

Mas o dinheiro não é tudo. Esteve cinco anos na periferia de Paris, onde trabalhava dez horas por dia. “A empresa dava-nos as condições todas: casa com despesas incluídas, menos a alimentação. O próprio trabalho também era diferente porque os materiais [de construção] são diferentes e as condições na obra eram melhores”, explica, referindo-se, sobretudo, às condições de higiene e conforto nas zonas comuns.

Durante 17 anos, José Gouveia passou por seis países e três empresas. Empresas essas que eram contratadas por grandes referências da construção civil, como foi o caso da Somague, Teixeira Duarte ou Mota-Engil. José Gouveia já fez parte da construção da Torre de S. Rafael (um dos prédios de luxo, semelhantes a um barco, no Parque das Nações), do Tribunal de Sintra, do Centro Cultural de Belém e da CUF Sintra.

José Gouveia é um dos milhares de trabalhadores portugueses da construção que procura fora de Portugal melhores condições financeiras. Em sentido inverso, são também milhares os estrangeiros que vêm para Portugal à procura do mesmo. O que para uns é pouco dinheiro, para outros é muito.

Comecei a trabalhar na construção civil porque se paga bem. O pagamento é certo e o patrão paga sempre quando tem de pagar. Por isso, desisti da agricultura.

Ventsislav Kirilov

Búlgaro a trabalhar na construção civil em Portugal

Ventsislav Kirilov deixou a Bulgária em 2012 e veio para Portugal, morando atualmente em Faro. Nos primeiros nove anos trabalhou na agricultura, o que “foi fácil porque havia muito trabalho”. Mas as despesas começaram a pesar e o búlgaro procurou mais. “Comecei a trabalhar agora na construção civil porque se paga bem”, conta ao ECO, notando como passou de três euros à hora na agricultura para o dobro nas obras. “Por isso, desisti da agricultura”, diz. Além disso, na construção civil, “o pagamento é certo e o patrão paga sempre quando tem de pagar”.

Apesar disso, Ventsislav Kirilov quer regressar à Bulgária porque, mesmo ganhando mais do que na agricultura, não chega. Para a renda da casa onde vive vão 250 euros, aos quais acrescem as despesas com a água, luz, gás, combustível e alimentação. “No total são 750 euros [em despesas]. Recebo 1.100 euros das obras, sobram-me cerca de 400 euros. Não chega para uma pessoa — e ainda bem que não tenho filhos”, diz.

“Quero e penso todos os dias em voltar para a Bulgária porque lá a vida não é igual a Portugal. É um país pobre, mas a vida lá é melhor“, diz, referindo que o preço dos combustíveis tem aumentado, bem como o da alimentação.

Azeeb (nome fictício) é outro exemplo de quem procurou em Portugal melhores condições. Tem 28 anos e nasceu no Paquistão. Está em Portugal há seis meses. Mas houve uma paragem antes de chegar cá. “Estava a trabalhar na Alemanha, mas não tinha documentos. Vim para Portugal porque é mais fácil conseguir cá documentos”, conta ao ECO. Mora atualmente em Lisboa, onde trabalha como ladrilhador. A mesma profissão que teve no Paquistão e na Alemanha. Por hora recebe seis euros. “Não um salário justo”. Apesar disso, diz estar “satisfeito” com a vida que tem em Portugal.

Faltam 80 mil trabalhadores. Salário médio levanta dúvidas

O setor da construção civil tem escassez de trabalhadores desde, sensivelmente, 2008. A Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas (AICCOPN) estima que haja cerca de 400 mil trabalhadores no setor, mas o problema é que faltam quase 80 mil para dar a resposta necessária.

Em dezembro de 2021, de acordo com os dados adiantados ao ECO pelo Ministério do Trabalho, havia 15.941 vagas de trabalho por preencher no Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), com a construção a dominar. Das cerca de 16 mil ofertas, 2.511 pertenciam ao setor da construção, ou seja, 16% do total. Segue-se o “alojamento e restauração” (2.385) e o ramo das atividades imobiliárias, administrativas e serviços de apoio (2.277).

O presidente da AICCOPN diz não compreender estes números. “Não há motivo para se falar em desemprego neste momento”, diz Manuel Reis Campos ao ECO, tendo em conta a escassez de trabalhadores existente na construção civil.

Em fevereiro de 2021 foi feita uma revisão ao Contrato Coletivo de Trabalho (CCT) aplicável ao setor da construção civil e obras públicas, resultando num salário mínimo de 532 euros para o escalão mais baixo (praticantes, aprendizes e estagiários — apenas por um ano) e de 1.020 euros para o escalão mais alto. A esses valores, que entraram em vigor em setembro de 2021, junta-se o subsídio de refeição, que foi aumentado para seis euros.

O inquérito mais recente do Ministério do Trabalho, realizado em julho de 2020, indica que o salário médio mensal dos trabalhadores da construção civil era de 1.010 euros, o equivalente a uma subida de 3,7%. Contudo, o Sindicato da Construção de Portugal estima que cerca de 40% recebia o salário mínimo.

A dificuldade em atrair trabalhadores, mesmo com salários a subir

A escassez de trabalhadores no setor deve-se a vários motivos, mas são dois os principais — ilustrados pelas histórias acima contadas: a ida de portugueses para fora, onde os salários são mais altos; e a falta de qualificações das pessoas — incluindo dos estrangeiros que vêm para cá.

O Grupo Casais, uma das maiores construtoras do país, tem quase 5.000 trabalhadores, sendo que cerca de 1.000 portugueses estão a trabalhar lá fora, espalhados por 17 países. “Em Portugal não conseguimos o equilíbrio entre o que recebemos e o que gostaríamos de pagar para reter as pessoas todas”, diz ao ECO o CEO do grupo, António Carlos Rodrigues.

Em Portugal não conseguimos o equilíbrio entre o que recebemos e o que gostaríamos de pagar para reter as pessoas todas [no país].

António Rodrigues

CEO do Grupo Casais

O responsável da empresa de Braga afirma que “não é fácil” contratar mão-de-obra hoje em dia, “porque o setor tem vindo a perder atratividade ao longo dos anos” e, à medida que aumenta a média de idade dos profissionais, não há jovens “que garantam a renovação daqueles que se reformam”. “Hoje, os jovens dão preferência a outro tipo de trabalhos”, acrescenta.

O presidente da AICCOPN confirma esta linha de pensamento e afirma que “é preciso atrair jovens para o setor da construção civil”. “Há um estigma no nosso setor. Hoje é um setor com capacidade, com novos métodos em todo o mundo e vai ser um setor do futuro. É preciso mudar esta imagem para que haja atração de jovens e reconversão da mão-de-obra que vem de outros setores”, diz Manuel Reis Campos.

O CEO do Grupo Casais garante que os salários “estão a subir de forma acelerada, à medida que o número de projetos aumenta” e que isso vai ser sentido em toda a Europa. O que acaba por ser bom por um lado, mas mau por outro. “É fácil imaginar um cenário muito negativo onde a maior parte da mão-de-obra portuguesa sai para mercados internacionais”, explica. “A subida de salários vai ser, obviamente, positiva para a sociedade, que vai ter mais valor disponível, mas o impacto (…) vai ser cumulativamente refletido em tudo”.

Mobilizar estrangeiros é solução, mesmo sendo menos qualificados

Perante a dificuldade em atrair os portugueses, o setor refugia-se nos estrangeiros, mesmo sendo menos qualificados. Voltamos a José Gouveia e aos 17 anos em que trabalhou fora de Portugal. “Cada vez mais os portugueses vão para o estrangeiro porque ganham mais. E depois os estrangeiros — que pouco ou nada sabem fazer nesta área — vêm para cá e nós temos de ensiná-los“, diz.

O CEO do Grupo Casais confirma que a mão-de-obra estrangeira “não é mais qualificada” do que a portuguesa. Contudo, tem outra virtude. “Em média, nota-se [nos estrangeiros] uma maior vontade de aprender e crescer nesta profissão. Os portugueses também mostram vontade de crescer, mas é naturalmente mais nas funções de coordenação e de maior responsabilidade”, nota.

É por isso que a construtora minhota considera importante importar mão-de-obra estrangeira, de forma a “permitir continuar a alimentar o pipeline de operários”. “Isso, por sua vez, permite que os atuais trabalhadores subam na sua qualificação para posições de maior responsabilidade”. António Carlos Rodrigues aponta um “segundo efeito positivo”. “Uma vez que a maior parte deles [estrangeiros] pretende regressar à sua pátria, isso pode constituir uma vantagem competitiva para as empresas portuguesas que vão necessitar de manter presença no mercado internacional“.

Tem de ser permitido que empresas que estão no exterior tragam trabalhadores de lá fora para cá. Interessa-nos que venham e que passem pelos centros de formação.

Manuel Reis Campos

Presidente da Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas (AICCOPN)

O presidente da AICCOPN afirma que trazer trabalhadores de outros países “vai ter de ser” uma solução. E que, para isso, é fundamental haver uma “dinâmica eficiente e célere em relação aos recursos humanos”. “Tem de ser permitido que empresas que estão no exterior tragam trabalhadores de lá fora para cá“, diz Manuel Reis Campos. “Interessa-nos que venham e que passem pelos centros de formação”.

Neste sentido, a associação alerta para a necessidade de apostar nos “dois centros de formação profissional de excelência” que estão sob a tutela do Ministério do Trabalho, mas que “não estão a funcionar como deve ser”. Este é, segundo Manuel Reis Campos, “o momento de atuar”. E isso passa por “aproveitar os centros de formação, criar condições de atratividade e ir buscar trabalhadores desempregados a outras áreas”.

Mão-de-obra e custos podem prejudicar execução do PRR

“Para concretizar o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e o Plano Nacional de Investimentos (PNI) também vamos precisar de muita mão-de-obra”, afirma o presidente da AICCOPN, que já põe em causa a execução do PRR. Apesar de garantir que o setor tem plena capacidade de assumir o PRR, alerta que os riscos atuais são muitos. “Temos um longo caminho até 2026, mas temos de começar já a concorrer e ter concorrência em relação às empresas estrangeiras”, diz Manuel Reis Campos.

Outro fator que pode pôr em causa a execução do PRR é o aumento dos custos de construção, resultado do encarecimento das matérias-primas. Os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE) indicam que os custos de construção de habitação nova dispararam 8,5% em termos homólogos em novembro, naquela que foi a maior subida desde agosto de 2008.

O preço dos materiais e o custo da mão-de-obra apresentaram, respetivamente, aumentos de 9,4% e de 7,3% face a novembro de 2020, refletindo a crise de escassez no mercado. No caso da mão-de-obra, foi também o maior avanço dos últimos 13 anos. Os dados mais recentes do Eurostat, referentes a outubro, indicam que a produção na construção aumentou na Zona Euro e União Europeia (UE), mas que Portugal apresentou a terceira maior quebra mensal (-1,2%).

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