Extrema-direita à beira do poder em Itália. O que se pode esperar de Meloni?

Eleições deste domingo em Itália apontam para que uma coligação de direita assuma o poder. A líder de extrema-direita Giorgia Meloni é a favorita para governar o país com uma dívida pública gigante.

Os italianos são este domingo chamados às urnas para decidir o futuro da terceira maior economia da União Europeia (UE), depois de o governo de unidade nacional liderado por Mario Draghi ter sido derrubado em julho por divergências internas, designadamente do Movimento 5 Estrelas (M5S), acompanhado posteriormente pela Liga, liderada por Matteo Salvini, e pelo Força Italia, do magnata Sílvio Berlusconi.

A crise estalou depois do M5S se ter ausentado numa votação sobre um decreto de ajuda social para fazer face à escalada da inflação, que levou o primeiro-ministro italiano a apresentar a demissão. Num primeiro momento, o Presidente Sergio Mattarella recusou o pedido, pedindo ao chefe de Governo para voltar ao Parlamento para reavaliar o apoio político à sua coligação governamental.

Uma nova ausência dos senadores do M5S durante outra votação, a da moção de confiança ao governo de coligação, levou Mario Draghi a pedir, pela segunda vez, a demissão a Sergio Mattarella por entender não reunir o apoio político necessário para a permanência em funções.

Neste contexto, foram marcadas eleições gerais antecipadas para este domingo. A maioria das sondagens, que não podem ser publicadas nas duas semanas anteriores ao plebiscito, aponta para uma clara vitória dos partidos de direita. Uma sondagem da Instituto Tecne, realizada há cerca de um mês, chegava a dar uma vantagem de 20 pontos a uma eventual coligação de direita perante uma coligação de centro-esquerda. Importa, no entanto, sublinhar que os partidos estão a concorrer sozinhos, pelo que o partido de extrema-direita Irmãos de Itália consolida o primeiro lugar nas intenções de voto, seguido pelo Partido Democrático (PD) de Enrico Letta.

Certo é que as sondagens mais recentes não apontam para um cenário muito distinto face ao traçado para as coligações. De acordo com uma sondagem divulgada a 9 de setembro e realizada pelo Instituto Ipsos, os Irmãos de Itália contavam com 25,1% das intenções de voto, seguido pelo PD com 20,5% das intenções de voto. Em terceiro lugar, surge o M5S, liderado por Giuseppe Conte e que recentemente se separou de uma aliança com o PD, que angariava 14,5% das intenções de voto, seguido pela Liga (12,5%) e pela Força Itália (8%).

A formação de coligações é um processo geralmente demorado em Itália. De acordo com a Reuters, o novo parlamento vai reunir-se a 13 de outubro e só após essa data é que o presidente italiano vai iniciar as reuniões com os líderes partidários, tendo em vista a formação de um governo.

A confirmar-se uma vitória dos partidos de direita, o contributo da ascensão do partido neo-fascista Irmãos de Itália, que passou de 4% dos votos em 2018 para cerca de 25% das intenções de voto nestas eleições, é significativo para esta eventual coligação. A verificar-se, Giorgia Meloni está a caminho de se tornar a primeira mulher a ocupar a liderança de um governo em Itália.

A eventual aliança de direita, composta pelos Irmãos de Itália, a Liga (ambos considerados de extrema-direita) e a Força Itália (uma ala mais moderada) asseguraria uma maioria confortável nas duas câmaras do Parlamento italiano. Uma sondagem divulgada no início do mês pelo instituto de pesquisa YouTrend, referia que esta aliança estava a apenas 3% de obter a maioria de dois terços na Câmara e Senado italianos – uma maioria qualificada que permitiria alterar a Constituição italiana.

“Se for atingida aí teremos uma leitura, apesar de tudo, de mais de rutura com o passado e, por exemplo, uma das ideias destes partidos e nomeadamente dos Irmãos de Itália, é a reforma da eleição do Presidente da República, o que seria obviamente muito relevante”, destaca Paulo Sande, especialista em assuntos europeus ouvido pelo ECO. Já Alex Armand, investigador italiano da Nova SBE/NovAfrica, lembra que “o Presidente da República claramente não é um político de direita”, pelo que acredita que a “Constituição será defendida”.

As divergências entre os blocos

Resta saber se alguns temas podem suscitar divergências fraturantes no seio desta coligação e comprometer a futura estabilidade política de Itália. Em causa estão temas como a proximidade pró-Putin da Liga e da Força Itália, em contraste com a posição pró-ocidental dos Irmãos de Itália, ou as políticas de imigração, que podem minar internamente a coesão da coligação e, externamente, a unidade e solidariedade europeias.

Além disso, tanto a Liga e os Irmãos de Itália manifestaram apoio ao primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán em contraste com a Força Itália, como recentemente se viu quando da votação da resolução do Parlamento Europeu que qualificou a Hungria como não sendo uma democracia plena.

Os governos têm durado relativamente pouco tempo, e, portanto, teria muitas dúvidas em falar em estabilidade e num governo a longo prazo em Itália.

Paulo Sande

especialista em assuntos europeus

Ao ECO, Paulo Sande sublinha que os “governos em Itália têm durado relativamente pouco tempo”, pelo que prefere não apostar num governo a longo prazo. Ainda assim, o especialista reconhece que o que separa os partidos de direita, “nomeadamente a guerra na Ucrânia, é obviamente importante”, mas acredita que os partidos “encontrarão um ponto de equilíbrio”, que poderá passar por “provavelmente” dar “menos apoio ao esforço de guerra dos ucranianos“, mas sem demonstrar uma cisão com a posição europeia. “Haverá provavelmente uma solução intermédia que não conduz à rutura”, sintetiza o perito em Ciência Política e Relações Internacionais.

A posição é partilhada por Jaime Nogueira Pinto, que faz alusão à votação dos Irmãos de Itália e da Liga na resolução do Parlamento Europeu sobre a democracia húngara e ao facto de Berlusconi se ter confessado “dececionado com o Presidente russo”, para referir que “estas diferenças” não vão “alterar ou perturbar” a coligação. “Sabem bem o que os une e, sobretudo, contra o que estão“, aponta o politólogo e historiador, ao ECO.

A crise energética da Europa, o aumento do custo de vida e o desemprego, bem como a sustentabilidade da dívida pública de Itália (que está acima de 150% do PIB) dominaram o debate político entre a direita e a esquerda nas últimas semanas, com Meloni a admitir desafiar as regras europeias sobre o pacto de estabilidade e crescimento, bem como a defender a renegociação do plano de recuperação Covid da UE.

“A grande preocupação de Bruxelas, da Comissão Europeia e de outras capitais europeias é justamente essa”, afirma Paulo Sande, referindo-se às regras europeias – isto apesar da presidente da Comissão Europeia ter prometido dar aos Estados-membros “mais flexibilidade nas trajetórias de redução da dívida” – e lembrando que a líder neo-fascista tem vindo a garantir que “não vai fazer uma revolução, mas vai defender os seus interesses”. Ou seja, para o especialista em assuntos europeus, Itália poderá vir a afastar-se um pouco das regras europeias no que diz respeito ao controlo da dívida pública dos países. “Não diria muito longe, mas um bocadinho longe”.

Por outro lado, Jaime Nogueira Pinto considera que Itália “é capaz de lidar melhor com esses constrangimentos e regras” e critica o facto de haver dois pesos e duas medidas, lembrando que outros países como Alemanha e França têm vindo a contornar as disposições da UE “sempre que vão contra os seus interesses” e “sem que lhes aconteça nada, ou quase nada”. Já a Hungria “tem sempre a chantagem financeira de Bruxelas sobre a cabeça”, diz.

Se a eventual coligação de direita propõe mudar o atual sistema parlamentar italiano para um sistema presidencialista, bem como fazer um corte generalizado de impostos para fazer face à inflação, aumentar as pensões e dar benefícios às famílias, já a coligação de esquerda liderada pelo PD de Enrico Letta defende uma redução da carga fiscal direcionada para os mais desfavorecidos, tal como defendido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pela Comissão Europeia. Além disso, o PD defende ainda um maior investimento em energias renováveis e um salário mínimo de nove euros por hora, que abranja cerca de três milhões de pessoas.

Assim, ao slogan “Deus, Pátria e Família” de Meloni, contrasta o slogan “trabalho, trabalho, trabalho e, sobretudo, igualdade”, de Enrico Letta. O PD quer facilitar o processo de obtenção de cidadania por parte dos filhos de imigrantes e legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, bem como lutar contra a discriminação LGBT, tal como aponta a BBC.

A coligação de centro-esquerda inclui agora apenas o PD e pequenos partidos de esquerda, nomeadamente ecologistas e pró-europeus. Apesar de ter vários pontos em comum com o PD e depois de ter sido o partido mais votado nas últimas eleições, M5S concorre sozinho e defende entre outras propostas, a emissão de dívida comum por parte da UE por forma a criar um fundo de recuperação de energia, bem como a revisão do pacto de estabilidade.

Coligação de direita pode ameaçar relação com a UE?

Em face da ascensão da extrema-direita em Itália há quem receie que esta mudança política possa fazer “mossa” na democracia italiana, bem como ter consequências para a unidade e solidariedade da UE e até no que toca à influência exercida dentro da UE, que ganhou impulso com a liderança de Draghi.

O aviso foi, inclusivamente, deixado pela presidente da Comissão Europeia, que veio alertar que a UE tem “instrumentos” para reagir, tal como fez “nos casos da Polónia e da Hungria”, se não forem respeitados os princípios europeus. Ao ECO, Paulo Sande considera que “não há risco” de a democracia italiana vir a ser prejudicada caso a coligação de direita forme Governo, dado que “Meloni tem tentado suavizar o seu discurso nos últimos tempos”, dando garantias à esquerda e à direita.

“Por outro lado, há aqui três partidos que terão que se coligar entre si e isso normalmente significa sempre uma influência entre uns e outros no sentido de uma certa moderação em relação às posições mais fortes”, sinaliza o perito em Ciência Política e Relações Internacionais, notando ainda que Itália tem “uma sociedade civil relativamente forte” pelo que “e essa sociedade civil e o peso das instituições também pode contribuir para evitar essas consequências”.

Com o Rassemblement National como primeiro partido, em França, com o Vox e o Partido Popular tendo, segundo as sondagens, maioria em relação à Frente de Esquerda e os Fratelli no governo em Itália, o equilíbrio de forças na Europa poderá mudar.

Jaime Nogueira Pinto

Historiador e politólogo

Além disso, Paulo Sande descarta também que a “política de Itália venha a ser o detonador” de uma cisão com a Europa, dado que “os italianos são há muitos anos pró-europeus”. Os italianos “estão preocupados com o dia-a-dia, com a inflação, com um país que é das maiores economias da Europa, mas que cresce sempre na cauda da Europa. A previsão de crescimento para 2023 continua a ser muito baixa”, acrescenta Paulo Sande. Mas, afinal, qual é o atual estado da economia italiana?

Para onde caminha a economia italiana e quais os riscos?

Depois de uma forte recuperação em 2021, na sequência do “choque” provocado pela pandemia, este ano a economia italiana, à semelhança de outras economias europeias, sofreu um “abanão” após a invasão russa à Ucrânia. Para este ano, as últimas previsões da Comissão Europeia apontam para um crescimento de 2,9% do PIB (acima da média da UE e da Zona Euro), beneficiando de um efeito substancialmente positivo de 2021 e de uma revisão em alta do crescimento do PIB no primeiro trimestre. A taxa de inflação está estimada em 7,4%.

Para 2023, as previsões são bem mais pessimistas, com Bruxelas a antecipar um crescimento de apenas 0,9% do PIB, numa altura em que se preveem eventuais disrupções no fornecimento de gás, dada a elevada dependência por parte da Rússia. “Contudo, prevê-se que a deterioração das perspetivas de procura e o aumento dos custos de financiamento prejudiquem o investimento empresarial, sobretudo em maquinaria e equipamento. Em linha com uma fraca perspetiva global, as exportações de bens devem desacelerar. Em sentido contrário, é provável que as exportações de serviços beneficiem de uma maior normalização dos fluxos internacionais de turismo”, denota ainda a entidade liderada por Ursula von der Leyen, no relatório divulgado a 14 de julho. Já a inflação para 2023 está prevista em 3,4%.

Além disso, Itália é um dos países que mais beneficia do Plano de Recuperação e Resiliência, com uma fatia de quase 200 mil milhões de euros, e enfrenta questões sobre a sustentabilidade da dívida, que ronda quase três biliões de dólares. Por outro lado, é também um país particularmente influenciado pelas recentes decisões do Banco Central Europeu num cenário de aumento das taxas de juro.

Os problemas económicos não são novidade para a Itália, o PIB per capita não cresceu desde 2000 e o desemprego formal entre os jovens permaneceu elevado nos últimos anos. (..) A economia italiana sofre de baixa produtividade, devido a uma mistura de problemas demográficos, culturais e estruturais, mas na última campanha, não ouvi um único político fornecer soluções reais para este problema.

Alex Armand

Professor na Nova SBE/NovAfrica

Ao ECO, Alex Armand sublinha que o programa eleitoral dos partidos de direita “é uma mistura de pontos muito vagos” e que alguns destes são “muito difíceis de concretizar do ponto de vista financeiro”. Nesse sentido, tal como Paulo Sande, o investigador italiano admite que há um “risco real” de o governo de direita procurar apostar em “reformas brandas com questões orçamentais, especialmente a longo prazo“.

Além disso, o professor da Nova SBE/NovAfrica destaca que o “primeiro ponto do programa dos Irmãos de Itália é resolver o problema demográfico e a solução é principalmente uma transferência financeira, mas não transmite uma ideia clara de onde virá o dinheiro”. Contudo, por outro lado sinaliza que há razões para crer que “o risco será contido” dado que o governo enfrentará oposição, nomeadamente do presidente italiano, da sociedade civil já que “o apoio à UE e ao euro ainda é forte” no país, bem como dos compromissos vinculados aos fundos de recuperação Covid.

O investigador lembra ainda que o “PIB per capita não cresce desde 2000“, que “o desemprego entre os jovens permanece elevado nos últimos anos” e a produtividade continua baixa. “A economia italiana sofre de baixa produtividade, devido a uma mistura de problemas demográficos, culturais e estruturais, mas na última campanha, não ouvi um único político fornecer soluções reais para este problema”, critica, notando ainda que os partidos de direita preferiram centram-se em “ideias de nacionalismo e protecionismo”, o que serão “más ideias para a economia italiana”.

Vitória de coligação de direita pode mexer com equilíbrio de forças norte-sul?

Mas afinal, uma vitória de uma coligação de direita poderá ter consequências para o equilíbrio de forças institucional entre os países do sul e os países do Norte da Europa? Ao ECO, Paulo Sande sinaliza que nos últimos anos Itália, bem como “todos os outros países do sul”, fizeram “um grande esforço” para fazer as reformas necessárias, pelo que considera que, quando necessário, os países do sul têm a “capacidade de se afirmar”.

Já Jaime Nogueira Pinto vai mais longe e admite que “com o Rassemblement National como primeiro partido, em França, com o Vox e o Partido Popular tendo, segundo as sondagens, maioria em relação à Frente de Esquerda e os Fratelli no governo em Itália, o equilíbrio de forças na Europa poderá mudar”.

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