Indústria portuguesa ataca pacote “verde” europeu

Empresários chumbam plano de Bruxelas para responder aos EUA e encorajar investimentos na descarbonização, que é “muito limitado” no financiamento e vai gerar “distorções sérias” entre países da UE.

Embora a classificação que lhe atribuam seja uma negativa alta – por tentar, ainda assim, dar “alguma resposta” à promoção da competitividade das empresas e à melhoria das condições de investimento –, os industriais portugueses não têm dúvidas em chumbar o chamado Net Zero Industry Act [NZIA], o plano para uma indústria menos poluente com que a Comissão Europeia tenta dar um empurrão à política de descarbonização e colocar o Velho Continente na frente da produção de tecnologias verdes – e responder ao americano “Inflation Reduction Act” (IRA), que Bruxelas já considerou discriminatório.

O quadro regulatório apresentado por Ursula von der Leyen, que fixou como meta que 40% da tecnologia de emissões zero para atingir as metas comunitárias até 2030 seja fabricada na Europa, promete reduzir a carga administrativa, simplificar os licenciamentos e reforçar a formação e os apoios ao investimento em equipamentos “estratégicos”, como baterias, painéis solares, turbinas eólicas, eletrolisadores e tecnologias de captura de carbono. E os benefícios fiscais, que, a par das subvenções e dos empréstimos, avançam “a pés juntos” nos EUA, num megapacote de 500 mil milhões de dólares, na Europa são (ainda mais) vagos e vão depender de cada Estado-membro.

A diferença de ambição e de objetividade face à iniciativa de Joe Biden, assinalada ao Financial Times por gigantes industriais como a Solvay, Merck ou Dow, é também contestada por uma dezena de associações industriais ouvidas pelo ECO, que duvidam dos efeitos práticos e falam em “mais do mesmo” e de um “passo mínimo” para encorajar os investimentos industriais na Europa. Criticam o financiamento europeu “muito limitado” e que vai pouco além do menu dos fundos já disponíveis; temem o agravamento das “distorções sérias” no mercado interno; e lamentam um plano limitado a setores ou tecnologias específicas, que Bruxelas decreta como “estratégicos”, e demasiado concentrado na produção de tecnologias limpas, ignorando os incentivos para reduzir as despesas operacionais das fábricas.

Entretanto, também o Reino Unido divulgou o seu próprio plano de incentivos à indústria para acelerar a transição energética. Um documento com cerca de mil páginas em que, entre os incentivos fiscais, surgem apoios para o setor das renováveis, para a produção de hidrogénio e a classificação do nuclear como energia “verde”. O secretário de Estado do Tesouro, Jeremy Hunt, garantiu que a estratégia britânica não surge como resposta ao IRA ou ao NZIA. “Não vamos entrar numa corrida distorcida aos subsídios com os nossos amigos e aliados. Vamos canalizar o financiamento público de uma forma estratégica nas áreas onde o Reino Unido tem uma clara vantagem competitiva.”

Conferência "Querer e Crescer: Ideias para acelerar o crescimento de Portugal" - 20MAR23
Sandra Santos, presidente da Associação dos Industriais de Vidro de EmbalagemHugo Amaral/ECO

A Associação dos Industriais de Vidro de Embalagem (AIVE), que representa três grandes empresas – BA Glass, Vidrala e Verallia – com seis unidades fabris, mais de 2.000 trabalhadores, um volume de negócios de 600 milhões de euros e 1,5 milhões de toneladas de produção anual, apelida o europeu NZIA como “um passo mínimo para encorajar os investimentos industriais na Europa”, com propostas “relativamente limitadas” para impulsionar as tecnologias net-zero e um apoio financeiro apresentado no novo Quadro Temporário de Auxílios Estatais e Transição que “continua a ser fortemente limitado”.

“Além de o preço do gás na Europa ser cerca de cinco vezes superior ao dos EUA, não tem paralelismo ao IRA de 2022, seja de que forma for. Não é claro que esta nova proposta de apoio europeia seja suficiente para contrabalançar os custos de energia mais elevados e instáveis que provavelmente continuarão a ser uma realidade para a indústria europeia, uma vez que não olha para o problema do ponto de vista do negócio e do investidor”, acrescenta a associação patronal liderada por Sandra Santos, CEO da BA Glass.

Concentra-se demasiado nos investimentos na produção de tecnologias limpas, ignorando os incentivos para reduzir as despesas operacionais do dia-a-dia.

Associação dos Industriais de Vidro de Embalagem (AIVE)

Por um lado, “concentra-se demasiado nos investimentos na produção de tecnologias limpas, ignorando os incentivos para reduzir as despesas operacionais do dia-a-dia”, que é o foco do americano IRA, especialmente na captura e armazenamento de hidrogénio e carbono. O investimento num eletrolisador, exemplifica a AIVE, “não permitirá ter hidrogénio renovável se a eletricidade necessária para o produzir for tão cara que esse hidrogénio ou não será comprado ou terá de ser vendido com prejuízo”. Por outro lado, afirma ao ECO que a lista de tecnologias apoiadas por esta proposta “ignora” a descarbonização da indústria intensiva em energia e a dimensão da circularidade.

O pacote legislativo Green Deal Industrial Plan, que integra o NZIA, “envia alguns sinais positivos, mas fica aquém do que seria desejável”, concorda a Biond – Associação das Bioindústrias de Base Florestal, recordando as várias projeções que antecipam que esta transição exigirá mais energia verde do que aquela que está hoje disponível, pelo que o programa europeu “deveria ir mais longe, nomeadamente em matéria de licenciamento para a instalação de tecnologia de energia renovável”.

E o plano norte-americano, que as papeleiras acham que devia ser tomado como exemplo, até mostra que é possível ter uma “política industrial proativa de apoio a investimentos a longo prazo com base no princípio tecnologicamente neutro e numa abordagem de cadeia de valor completa”. Já bastante mais impactadas pelo aumento brutal dos preços da energia, as empresas europeias correm o risco de ver “agravado o desequilíbrio” em termos de competitividade com os EUA, se não houver uma intervenção mais forte da UE ao nível das políticas públicas.

O plano norte americano mostra que é possível ter uma política industrial proativa de apoio a investimentos a longo prazo, com base no princípio tecnologicamente neutro e numa abordagem de cadeia de valor completa, pelo que deveria ser tomado como exemplo.

Biond – Associação das Bioindústrias de Base Florestal

Defensora de um quadro legislativo mais favorável às empresas, que reduza a burocracia, atraia investimentos e assegure coerência política e segurança jurídica, a antiga CELPA, comandada por António Redondo (Navigator) – representa igualmente Altri, DS Smith e Renova –, dramatiza o acesso a energia renovável a preços competitivos, que fomente a descarbonização da indústria. Simplificação do acesso aos fundos europeus, novos esquemas de apoio com base no princípio tecnologicamente neutro e redução dos custos administrativos e de conformidade são as sugestões deixadas ao ECO.

Carla Pedro, diretora-geral da APQuímica

Outro dos setores industriais mais intensivo em consumos energéticos e emissões de CO2 é o da Química, Petroquímica e Refinação, que assume ser “simultaneamente parte do problema e da solução”, pelos projetos em áreas como o hidrogénio verde ou as baterias para veículos elétricos, que contribuem igualmente para a transição verde e a descarbonização de outros setores. E com perto de 3.000 milhões de euros de investimentos previstos para Portugal até 2025, a diretora-geral da APQuímica vê com “muita preocupação” o efeito que o IRA poderá ter na deslocalização de projetos para os EUA. Atraídos por uma “abordagem mais simples, rápida e integrada” do outro lado do Atlântico, com parte dos apoios dirigidos diretamente às empresas industriais, em contraponto com a abordagem europeia “mais fragmentada, lenta e burocrática”.

“Numa primeira leitura, além de ainda faltarem muitos detalhes relevantes para fazer uma apreciação rigorosa – o que, só por si, é preocupante –, parece ser mais um plano, que se junta a muitos outros antes dele. Parece ser mais do mesmo”, desabafa Carla Pedro. A começar pelo conjunto de instrumentos de financiamento no NZIA que são geridos a nível nacional (PRR e fundos estruturais) e europeu (caso do Innovation Fund ou do InvestEU, pelo Banco Europeu de Investimento). Um “menu dos fundos já anteriormente disponíveis”, sem resultar claro como se poderão combinar no apoio às empresas.

Existe um enorme potencial de deslocalização deste tipo de investimentos do espaço europeu para os Estados Unidos, no quadro do IRA [Inflation Reduction Act], o que aliás já se está a verificar.

Carla Pedro

Diretora-geral da APQuímica - Associação Portuguesa da Química, Petroquímica e Refinação

Mais. Ao deixar nas mãos dos vários Estados-membros a atribuição desses apoios, “levanta, desde logo, questões de equidade críticas, associadas à falta de garantia de um level playing field no plano europeu, abrindo possibilidades a países com maior escala, massa crítica e disponibilidade orçamental, como Alemanha e França, que não se irão verificar noutros mais pequenos ou com menor disponibilidade orçamental para conceder apoios massivos, como é o caso de Portugal”. E num contexto de “salve-se quem puder” em matéria de auxílios de Estado, acrescenta, Portugal terá sempre uma posição mais frágil e menos capacidade para garantir a retenção e concretização dos seus investimentos.

Uma das novidades no NZIA é a identificação de oito “tecnologias net-zero estratégicas”, o que a responsável da APQuímica classifica como “perigosa”. A ATIC – Associação Técnica da Indústria de Cimento considera positiva a inclusão no regulamento das tecnologias de Captura e Armazenamento de carbono (CCS). Mas critica a ausência da referência às tecnologias para a sua posterior utilização para o fabrico de combustíveis renováveis sintéticos e de outros produtos químicos, fazendo com que parte das emissões estacionárias do CO2 capturado em instalações industriais possa ser combinada com o hidrogénio verde e ter uma finalidade.

Para dar uma “resposta mais forte” ao plano norte-americano, que inclui fortes incentivos fiscais e subsídios verdes, as cimenteiras pedem “idênticas condições de competitividade” para as empresas na UE. Isto é, um level playing field face a países terceiros e uma coordenação de políticas para dar “coerência” às medidas e garantir segurança jurídica aos operadores económicos. Condições equitativas e previsibilidade que são vitais para viabilizar os “investimentos significativos” desta indústria para a descarbonização, que exigem um “pacote abrangente de políticas e incentivos que se estenda a toda a cadeia de valor do cimento e do betão e que forneça os estímulos certos” para que produtos de menor pegada de carbono consigam competir com os restantes.

Temos expectativas baixas no que respeita à implementação de benefícios fiscais em Portugal para apoiar novos investimentos visando a transição energética em setores estratégicos.

Associação Portuguesa dos Industriais Grandes Consumidores de Energia Elétrica (APIGCEE)

Já do ponto de vista das eletrointensivas, que tipicamente não desenvolvem tecnologias de produção de energia, o medo é que o plano de Biden, com o seu “pragmatismo financeiro e dimensão significativamente superior”, fragilize a posição das indústrias europeias face às congéneres americanas. A isto acrescem “as expectativas baixas no que respeita à implementação de benefícios fiscais em Portugal para apoiar novos investimentos visando a transição energética em setores estratégicos”. As críticas da APIGCEE – Associação Portuguesa dos Industriais Grandes Consumidores de Energia Elétrica abrangem, igualmente, a ausência de referência às tecnologias de captura de carbono, que integram os cenários para a neutralidade carbónica traçados por entidades como o IPCC – Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas ou a AIE – Agência Internacional de Energia.

Distorção e falta de ambição

A CIP – Confederação Empresarial de Portugal, que acaba de eleger Armindo Monteiro como novo presidente com 87% dos votos, saúda que “finalmente a competitividade das empresas [volte] a ser assunto de debate em Bruxelas”, mas queria ver mais do que “algumas intenções” na redução da carga legislativa, e estendida a toda a indústria, até porque em matérias de subsídios dificilmente conseguirá competir com outras partes do mundo”. Temendo um “agravamento das distorções no mercado interno”, pede que o novo Quadro Temporário de Crise e Transição seja acompanhado do reforço de fundos europeus, “para que todos os países possam ter as mesmas possibilidades de sucesso”.

A estratégia net-zero não deverá ser limitada a setores ou tecnologias específicas: todos os setores industriais precisam de fazer parte desta transformação.

CIP – Confederação Empresarial de Portugal

“No que diz respeito às ideias sobre financiamento europeu, este plano industrial fica muito limitado a intenções para melhorar a utilização dos instrumentos já existentes. A ideia de criar um Fundo de Soberania Europeu já tinha sido avançada, em setembro, por Ursula von der Leyen, mas continuamos sem saber qual a sua dimensão ou como será financiado. (…) Para ser credível, este fundo deve ser dotado dos meios adequados e devemos considerar a possibilidade de o financiar através de dívida comum, como foi feito com sucesso com o NextGeneration EU”, aponta fonte oficial da CIP, repetindo igualmente a crítica de que a estratégia net zero não deve ser limitada a setores ou tecnologias específicas, pois “todos os setores industriais precisam de fazer parte desta transformação”.

Luis Miguel Ribeiro, presidente da AEP, em entrevista ao ECO - 13SET22
Luís Miguel Ribeiro, presidente da AEPRicardo Castelo/ECO

A redução dos custos de contexto que permita atrair investimentos “essenciais” para cumprir as metas da neutralidade climática, “nomeadamente através de um ambiente regulatório previsível e simplificado, mas também no reforço da melhoria das competências”, é elogiada pelo presidente da Associação Empresarial de Portugal (AEP). Resta saber, diz Luís Miguel Ribeiro, se em termos de verbas a disponibilizar, a Europa está “disposta a ir tão longe quanto possível nesta ambição, face aos apoios que estão a ser avançados noutras partes do globo, a ocidente e a oriente, assegurando que a economia europeia não fique para trás”.

Esta comparação com o que está a avançar nos EUA, mas também na China e no Japão, é frisada também por José Cruz Pratas, presidente da APICER (indústria cerâmica), desconfiando que seja “insuficiente”. Por outro lado, adverte que a estratégia europeia só será bem-sucedida “se os produtos que respeitam as normas mais elevadas da UE não tiverem de competir com as importações de baixo padrão de outros países”. “Será muito importante garantir a competitividade global e a igualdade de condições de concorrência, entre a Europa e os países terceiros, e dentro da UE. É premente a alocação de mais recursos públicos e apoios, para as indústrias intensivas em energia, tais como a cerâmica e o vidro”, reivindica.

José Cruz Pratas, presidente da APICER

Já Rafael Campos Pereira, porta-voz da indústria metalúrgica e metalomecânica, que reclama o estatuto de setor mais exportador da economia nacional (23.080 milhões de euros em 2022), concorda que o NZIA e as restantes propostas que o acompanham, nomeadamente o ato para as matérias-primas críticas, são “iniciativas positivas”. Duvida, porém, que sejam “ambiciosas o suficiente”. Desde logo, ao nível do financiamento, uma vez que se reduz à coordenação de mecanismos já existentes. O fundo de soberania volta a ser mencionado, mas continua sem ver a luz do dia. E no quadro temporário que relaxa os auxílios de Estado, “era necessário que Portugal também fizesse uso destas possibilidades, ou então iremos sofrer as consequências de distorções sérias que se irão criar no mercado interno”.

O investimento direto estrangeiro (IDE) na UE caiu 66% em 2021 face a 2019 (pré-Covid), em contraste a subida registada nos EUA. O número de projetos de investimento de raiz no espaço comunitário caiu 15% entre 2021 e 2020, enquanto na maior economia do mundo disparou 18% no mesmo período. Uma divergência que o vice-presidente executivo da AIMMAP estima que se vá manter: “os grandes grupos empresariais, ao decidirem para onde vão canalizar os seus investimentos, não vão optar pela UE, perante esta tentativa tímida para fazer face ao IRA”. Outro ponto em que a estratégia europeia “erra” é no foco em setores ou tecnologias que Bruxelas identificada como estratégicos, quando esses princípios devem ser alargados à indústria como um todo. “Afinal todos os setores terão de proceder à transição verde para termos sucesso na estratégia de descarbonização”, completa.

O quadro temporário que relaxa os auxílios de Estado poderá ser positivo em alguns países. Era necessário que Portugal também fizesse uso destas possibilidades, ou então iremos sofrer as consequências de distorções sérias que se irão criar no mercado interno [europeu].

Rafael Campos Pereira

Porta-voz da indústria metalúrgica e metalomecânica (AIMMAP)

É o caso do automóvel, para quem a Comissão Europeia deve desenvolver um quadro de financiamento de cinco a dez anos baseado em objetivos ligados à transição verde e digital, para que as empresas possam “investir com confiança para escalar a produção de tecnologias e processos de fabrico ecológicos e circulares”. Isto porque, sustenta o secretário-geral da AFIA – Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel, ao nível da mobilização de fundos, “as oportunidades são dispersas, carecem de escala e são de difícil acesso”. Na melhor das hipóteses, diz Adão Ferreira, o ajuste temporário do quadro de auxílios estatais pode ser “uma solução intermédia para permitir que os estados-membros limitem o pior impacto do IRA e dos custos de energia”.

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