“Montanha” de dívida nos EUA preocupa, mas crise não está no horizonte

Com défices orçamentais crescentes, dívida pública em máximos e juros no nível mais alto em 16 anos, começam a acentuar-se os receios sobre o impacto da deterioração das contas públicas dos EUA.

Uma crise de dívida na maior economia do mundo, atingindo um mercado que é o principal pilar dos mercados financeiros mundiais, teria proporções inimagináveis. Este é um cenário que continua longe do horizonte, mas a deterioração das contas públicas nos Estados Unidos, numa altura em que as taxas de juro estão em máximos de 16 anos, está a provocar nervosismo entre investidores e economistas.

A Moody’s baixou o outlook do rating da dívida dos Estados Unidos de estável para negativo, ficando mais perto de juntar-se à Fitch e Standard & Poor’s, que já não atribuem a nota máxima à maior economia do mundo. A Moody’s justificou a revisão com os défices orçamentais mais elevados e uma deterioração da sustentabilidade da dívida, que está mais vulnerável ao impacto das elevadas taxas de juro.

No atual contexto de taxas de juro mais elevadas, sem medidas de política orçamental eficazes para reduzir a despesa pública ou aumentar as receitas, a Moody’s espera que os défices orçamentais dos EUA permaneçam muito elevados, enfraquecendo significativamente a sustentabilidade da dívida”, refere a Moody’s no comunicado de 10 de novembro onde explica a revisão em baixa. A manutenção da notação financeira no nível máximo reflete a”formidável força de crédito” e o desempenho económico “excecional”.

O défice federal dos Estados Unidos aumentou 23% no ano fiscal terminado em setembro de 2023, atingido 1,7 biliões de dólares, o que equivale a perto de 7% do PIB. Excluindo o efeito do plano de cancelamento da dívida a estudantes (anunciado em 2022, mas que nunca se efetivou), o défice duplicou para 2 biliões de dólares. É o valor mais elevado desde o desequilíbrio de 2,78 biliões de 2021, que foi impulsionado pelos gastos extraordinários relacionados com a pandemia. Equivale a mais de seis vezes o PIB anual de Portugal.

A dívida bruta dos Estados Unidos superou pela primeira vez em setembro a fasquia dos 33 biliões de dólares, montante que equivale à soma do PIB das economias da China, Japão, Alemanha, Índia e Reino Unido e supera os 250 mil dólares por cada família norte-americana. Um exercício da Peter G. Foundation mostra que se cada família contribuísse com mil dólares por mês para liquidar a dívida, seriam necessários 21 anos para chegar a zero.

Esta “montanha” de dívida tem vindo a crescer de forma mais célere nos últimos meses, mas resulta de défices orçamentais recorrentes ao longo dos últimos anos. Desde 2001 que o orçamento não gera excedentes e as perspetivas para os próximos anos são muito desfavoráveis. As projeções do Congressional Budget Office (CBO), agência governamental não partidária, dão conta que o défice federal anual deverá aumentar ao longo da próxima década, chegando a 2,7 biliões de dólares em 2033.

Entre 2024 e 2033, o défice orçamental deverá atingir um valor acumulado de 20,2 biliões de dólares. O défice de 6,9% do PIB estimado para 2033 quase duplica a média dos últimos 50 anos (3,6%). Numa projeção mais alargada, o CBO estima que o défice deve atingir 10% dentro de 30 anos, como é visível no gráfico em baixo e demonstra por que estão a soar os alarmes sobre a trajetória das contas públicas da maior economia do mundo.

Na base do agravamento dos défices nos próximos anos está sobretudo a fatura crescente com o serviço da dívida. No ano fiscal de 2023, os Estados Unidos gastaram 711 mil milhões de dólares com o pagamento de juros, o que significa perto de 2 milhões de dólares por dia. Em outubro, primeiro mês do atual ano fiscal, o custo agravou-se 87% para 88,9 mil milhões de dólares. O fardo da dívida vai ter um peso crescente nos défices dos próximos anos, com a CBO a apontar para valores acima de 3% do PIB a partir de 2028, duplicando para 6% na viragem do século. A fatura com juros é atualmente a sétima rubrica com maior peso na despesa pública, sendo que em 2033 já será a terceira, só atrás dos custos com a Segurança Social e o Medicare.

Dívida pública em máximos não significa crise

Este aumento acentuado dos défices reflete-se de forma bem explícita na evolução e estimativas para a dívida pública do país. A dívida pública líquida está prestes a superar a fasquia de 100% do PIB, mais do que duplicando no espaço de apenas 15 anos. Em 2007, antes da crise financeira e recessão profunda que motivou fortes gastos públicos, os Estados Unidos tinham uma dívida pública equivalente a 35,2% do PIB.

De acordo com as projeções da CBO, o máximo histórico atingido na II Guerra Mundial (106% do PIB em 1946) será superado em 2029. As estimativas de longo prazo são bastante preocupantes, com a CBO a estimar 118,9% dentro de 10 anos e 181% em 2053. Entre 1973 e 2022, o valor médio foi de 46,9%, pelo que estão a ser projetados valores mais de três vezes superiores.

Apesar das perspetivas preocupantes para as contas públicas dos Estados Unidos, a generalidade dos economistas afasta o cenário de uma crise de dívida na maior economia do mundo. A trajetória de agravamento do défice e da dívida “aumenta a probabilidade” de uma crise de dívida, mas esta “continua a ser extremamente baixa”, diz ao ECO Gonçalo Pina, professor associado de economia internacional na ESCP Business School, em Berlim.

“Rácios de dívida extremamente elevados podem desencadear uma crise, mas ninguém sabe onde se encontra esse nível”, refere ao ECO William Gale, economista do Brookings Institution. Além disso, “não creio que os EUA enfrentem algo parecido com uma ‘crise’ de dívida neste momento”, pois o país “tem os recursos para pagar as dívidas nas próximas décadas” e “o resto do mundo considera a dívida do Tesouro dos EUA um ativo seguro”.

Mas os alertas sobre a tendência negativa estão a crescer de tom. Vítor Gaspar, diretor do Departamento de Finanças Públicas do FMI, assinala que os “défices dos EUA são elevados e as projeções apontam para que assim persistam”, pelo que se as políticas não forem alteradas, “as dinâmicas da dívida são muito desfavoráveis”. Apesar de não perspetivar riscos de financiamento do Tesouro, o antigo ministro das Finanças português avisa que “a perpetuação das atuais políticas implica uma trajetória orçamental insustentável”.

Embora escassas, há previsões mais preocupantes. Ray Dalio, fundador da firma de hedge funds Bridgewater Associates , acredita que os Estados Unidos enfrentam uma iminente crise de dívida. “Será a evolução da oferta e da procura a determinar a velocidade com que vai surgir a crise, pelo que estou a acompanhar a situação com muito proximidade”, referiu em entrevista à CNBC aquele que é um dos veteranos mais influentes de Wall Street.

“Rácios de dívida extremamente elevados podem desencadear uma crise, mas ninguém sabe onde se encontra esse nível. Não creio que os EUA enfrentem algo parecido com uma ‘crise’ de dívida neste momento”, pois o país “tem os recursos para pagar as dívidas nas próximas décadas” e “o resto do mundo considera a dívida do Tesouro dos EUA um ativo seguro”.

William Gale, economista do Brookings Institution

Os elevados custos de financiamento do Tesouro norte-americano complicam as perspetivas para a evolução dos défices e da dívida. Habitualmente as yields dos títulos de dívida movem-se quase em exclusivo em função das perspetivas para a evolução dos juros da Reserva Federal, mas a dinâmica alterou-se nos últimos meses.

Os alarmes soaram quando o Tesouro dos EUA anunciou, a 31 de julho, que iria emitir 1 bilião de dólares em títulos de dívida no terceiro trimestre, o que representa o valor mais elevado de sempre e 274 mil milhões de dólares acima do projetado dois meses antes. A elevada pressão da oferta e a mensagem da Fed de que os juros dos EUA vão permanecer em níveis elevados por mais tempo (higher for longer) atirou a yield das obrigações dos prazos mais longos (10 e 30 anos) para máximos de 16 anos, acima de 5%.

Os juros aliviaram recentemente depois do plano de financiamento do Tesouro para o quarto trimestre ter sido mais contido e o banco central ter sinalizado que não deverá voltar a subir os juros. Contudo, não é expectável que a inversão da política monetária aconteça tão cedo e a inflação deverá continuar em níveis elevados, limitando a margem para uma descida dos custos de financiamento do Tesouro.

O “rácio dívida/PIB tem sido relativamente constante nos últimos anos, mesmo com o aumento das taxas de juro”, pelo que William Gale atribui a subida das yields das obrigações “à economia muito forte dos EUA”, bem como ao agravamento das taxas de juro por parte da Fed.

Gonçalo Pina salienta que o agravamento das yields até aos 5% “reflete um trimestre em que os EUA emitiram mais dívida que o costume”, sendo que “no último trimestre do ano a emissão será menor uma vez que as receitas fiscais ficarão acima do esperado”. Desta forma, as yields das obrigações continuarão elevadas “enquanto a Fed mantiver as taxas de juro elevadas, mas o prémio de risco deverá baixar”, pelo que “não é uma situação preocupante”.

Juros altos pressionam economia, famílias, empresas e mercados

A conjugação de juros altos e degradação dos indicadores orçamentais dos EUA representa uma ameaça com impactos abrangentes, não só para a economia global, mas também para o poder de compra das famílias, os custos das empresas e também a atratividade do investimento nos mercados acionistas.

Um endividamento tão elevado vai abrandar o crescimento económico, impulsionar o pagamento de juros a detentores estrangeiros de dívida dos EUA e representa um risco significativo para as perspetivas económicas e orçamentais, além de representar um constrangimento para as decisões políticas”, refere a CBO. Nas projeções de longo prazo para a economia norte-americana, a agência prevê o PIB dos EUA com um crescimento potencial médio de 1,8% entre 2023-2033 e 1,5% entre 2044-2053%. Bem abaixo dos 2,3% registados entre 1993 e 2022.

Se esta dinâmica persistir, os Estados Unidos podem estar perante uma “armadinha da dívida”, a designação que se dá ao círculo vicioso em que os custos de financiamento mais elevados e défices orçamentais mais altos colocam o stock da dívida numa espiral insustentável.

Uma ameaça que paira atualmente sobre um conjunto alargado de países com economias desenvolvidas e que representa uma restrição significativa ao crescimento económico. Isto numa altura em que muitas economias enfrentam desafios que adicionam pressão sobre a dívida, como o envelhecimento da população e o combate às alterações climáticas. A dívida da economia global atingiu um recorde de 307 biliões de dólares em junho deste ano, sendo que 80% do aumento de 10 biliões registado no primeiro semestre foi da responsabilidade das economias desenvolvidas.

Se a deterioração das contas públicas tem efeitos que podem perdurar no longo prazo, há outros que já se fazem sentir de forma expressiva e representam um fardo adicional para as famílias norte-americanas, já a braços com a degradação do poder de compra em virtude da escalada da inflação. Devido à alta das yields, as taxas de juro do crédito à habitação e do financiamento automóvel atingiram um máximo desde o início do século acima dos 8%. A taxa de juro dos cartões de crédito fixou o nível mais elevado de sempre.

Com os bancos a aumentarem as restrições na concessão de crédito, o agravamento das condições financeiras é evidente, o que acabará por ter reflexos na evolução da atividade económica. O aumento do incumprimento é inevitável e o agravamento dos custos de financiamento das empresas vai restringir o investimento e limitar os lucros.

A economia norte-americana tem demonstrado uma resiliência notável ao peso dos juros altos, com o PIB a crescer a um ritmo anual acima de 4% no terceiro trimestre. O abrandamento da economia é inevitável e a ameaça de recessão em 2024 não está excluída, embora o cenário central passe por uma “aterragem suave” da economia.

Além de servir de referência para uma série de operações de financiamento a famílias e empresa, “a dívida pública norte-americana é muito líquida e por isso serve como base de comparação para outros ativos”, refere o economista da ESCP Business, assinalando que taxas de juro mais elevadas nos títulos de dívida nos EUA significam taxas de juro mais elevadas para a dívida pública e privada de outros países.

As obrigações norte-americanas também representam um pêndulo fundamental para os mercados acionistas globais. O aumento das emissões por parte do Tesouro dos EUA para financiar o défice atrai capital alocado às ações. Além disso, a elevada rendibilidade dos títulos de dívida aumenta o prémio de risco das ações, levando os investidores a procurar ativos de risco mais reduzido que estão a oferecer retornos interessantes.

O agravamento das yields “reflete um trimestre em que os Estados Unidos emitiram mais dívida que o costume. As taxas de juro das obrigações continuarão elevadas claro enquanto a Fed mantiver as taxas de juro elevadas, mas o prémio de risco deverá baixar. Não é uma situação preocupante”.

Gonçalo Pina, professor associado de economia internacional na ESCP Business School, em Berlim

Washington, China e Japão e Fed

Há décadas que os Estados Unidos estão a financiar os seus défices crónicos através da emissão de dívida que é adquirida por investidores estrangeiros, sobretudo de países com maior capacidade de gerar poupança, como é o caso da China e do Japão. Desde famílias, a investidores institucionais e bancos centrais.

A dívida norte-americana continua a ser o ativo de referência nos mercados globais e a ser percecionada com uma opção de investimento segura. Contudo, esta confiança tem sido abalada nos últimos tempos, com a política em Washington a contribuir para esta debilidade. Em junho o país voltou a ficar próximo de entrar em incumprimento devido à falta de entendimento entre democratas e republicanos para elevar o teto da dívida.

Mais do que a evolução dos juros, é “pior se houver incerteza sobre as finanças americanas, por exemplo, por causa de questões políticas que levem ao ‘fechar do governo’ quando não há acordo para subir o teto de divida”, salienta Gonçalo Pina. “Esta incerteza tornará mais difícil prever taxas de juro e logo mais difícil de desenvolver todas as atividades financeiras, não por razões económicas, mas por razões políticas”, refere o economista, lembrando que vem aí uma eleição nos EUA (presidenciais em novembro de 2024).

A incerteza política em Washington contribuiu para a revisão do outlook da Moody’s a 10 de novembro e também foi um dos argumentos utilizados pela Fitch, quando em agosto cortou o rating dos Estados Unidos para AA+. Alertas que contribuem para afastar alguns investidores da dívida norte-americana, acentuado um movimento já em marcha há algum tempo.

A China perdeu o estatuto de maior financiador dos Estados Unidos depois de ter reduzido o stock de dívida norte-americana em 40% na última década. Com as relações políticas e comerciais entre duas maiores economias do mundo a viverem tempos difíceis, é provável que esta tendência se acentue, até porque Pequim pretende defender a sua moeda, que tem sofrido desvalorizações acentuadas. Em 2013, a China detinha 1,3 biliões em títulos de dívida dos EUA, sendo que a venda de mais de 200 mil milhões de dólares nos últimos 18 meses baixou o stock para pouco mais de 800 mil milhões.

O Japão tem agora o estatuto de maior financiador dos Estados Unidos, mas também esta posição está ameaçada. Depois de décadas de uma política monetária ultra-acomodatícia, o Banco do Japão está cada vez mais pressionado a retirar as taxas de juro de terreno negativo. Esta inversão, embora não esteja em cima da mesa no curto prazo, pode provocar um repatriamento das poupanças domésticas para ativos japoneses, o que reduzirá a procura de títulos de dívida dos EUA.

Além deste potencial menor apetite por parte de investidores institucionais de países estrangeiros, o maior detentor de dívida dos EUA também está a reduzir a sua posição. No âmbito do endurecimento da sua política monetária, a Fed está a reduzir o seu balanço que atingiu níveis recorde depois de vários anos a comprar ativos. O banco central tem atualmente 4,7 biliões de dólares em títulos de dívida dos EUA, cerca de 18% do total e substancialmente abaixo do pico de 6 biliões de dólares. Com a Fed a implementar medidas para reduzir a liquidez na economia através da redução do balanço em 60 mil milhões de dólares por mês, este peso vai continuar a baixar nos próximos tempos.

Com o Tesouro a aumentar a oferta de dívida para financiar o défice e a procura a sofrer diversas pressões negativas, o foco dos investidores vai estar na capacidade de o mercado absorver todos os títulos emitidos e qual o impacto no custo de financiamento do país. O leilão de obrigações a 30 anos realizado a 9 de novembro contribuiu para agudizar os receios, com os bancos responsáveis pela emissão obrigados ficar com cerca de um quarto dos títulos, o dobro das emissões anteriores.

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