Apenas 4 países da Zona Euro superaram Portugal na correção das desigualdades de distribuição da riqueza desde 2017. A resposta está na subida do preço das casas.
Portugal tem-se destacado na Zona Euro como um dos países que mais tem conseguido reduzir as desigualdades de distribuição de riqueza das famílias. Segundo dados do Banco Central Europeu (BCE), o coeficiente de Gini de riqueza líquida das famílias em Portugal baixou 6,3% nos últimos seis anos, cerca de quatro vezes mais que a dinâmica registada pela média dos 20 países do espaço da moeda única.
Apenas a Eslováquia, os Países Baixos, a Irlanda e o Chipre registaram uma correção das desigualdades de distribuição da riqueza líquida das famílias maior que o alcançado por Portugal, entre o segundo trimestre de 2017 e o segundo trimestre de 2023.
Os números publicados recentemente pelo BCE com base em estimativas dos seus economistas mostram também uma clara divergência (positiva) de Portugal face à média da Zona Euro desde 2017. Portugal conseguiu, inclusive, que o seu coeficiente de Gini (medido numa escala de 0 a 1, em que 0 corresponde à completa igualdade e 1 à completa desigualdade) de distribuição de riqueza líquida passasse a ser inferior ao da Zona Euro — algo que não acontecia há seis anos. “A única razão que vejo para esta divergência é a valorização das casas”, refere Susana Peralta, professora de Economia da Nova SBE.
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A observação da economista é sustentada por uma subida dos preços das casas em Portugal neste período a um ritmo médio de 10% por ano, o dobro do aumento dos preços registados pela média dos 20 países da Zona Euro, segundo dados do Eurostat.
No espaço da Zona Euro, apenas a Lituânia e a Estónia registaram uma subida mais expressiva dos preços dos imóveis residenciais que Portugal nos últimos seis anos. “A valorização do imobiliário é sempre bom para quem é proprietário”, sublinha Susana Peralta.
Além disso, há ainda a considerar uma forte concentração do património das famílias nacionais em imobiliário. Segundo dados do BCE, mais de dois terços da riqueza líquida dos agregados familiares está alocada em betão.
É preciso recuar mais de uma década, até ao quarto trimestre de 2012, para encontrar um peso tão significativo dos imóveis residenciais na composição da riqueza das famílias portuguesas.
A subida da riqueza dos mais pobres é, em parte, ‘ilusória’, não só pela limitada liquidez do ativo em causa, mas também pela dupla função desse mesmo ativo, que não acontece com um ativo financeiro ou uma segunda habitação, por exemplo.
A contribuir para um aumento da riqueza das famílias ao longo dos últimos anos está também o facto de “Portugal fazer parte de um grupo de países com uma elevada percentagem de famílias sem ativos líquidos (25%)”, como refere o estudo “The Real Estate Market in Portugal”, coordenado por Paulo M. M. Rodrigues e publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Esta situação dificulta a concretização da venda dos ativos, o que numa situação de subida dos preços (como sucedeu nos últimos anos) revela-se positiva no património dos agregados familiares, mas também torna as famílias “mais vulneráveis a choques agregados”, particularmente em períodos de recessão.
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Influência da casa na riqueza de ricos e pobres
Apesar da subida do preço das casas ter estado na base da redução dos níveis de desigualdade da riqueza da generalidade das famílias portuguesas, o boom do imobiliário não afetou da mesma forma todos os agregados familiares.
Para as famílias mais vulneráveis proprietárias de imóveis, a subida dos preços das casas foi particularmente relevante, dado o maior peso que a casa tem no seu património, como aponta João Cerejeira, professor de Economia na Universidade do Minho.
Ao mesmo tempo que a desigualdade da riqueza diminuiu em Portugal nos últimos seis anos, o país teve um crescimento medíocre.
De acordo com um trabalho publicado em outubro de 2021 por quatro economistas do Banco de Portugal, a residência principal chega a pesar até 76% no património das famílias abaixo do percentil 80, que compara com um peso de 34% da casa da família no património líquido dos 20% mais ricos.
Por essa razão é que desde 2017 se assistiu a dois movimentos inversos: por um lado, houve um aumento da percentagem da riqueza líquida nacional detida pelos mais pobres (elevado peso da casa no seu património) e, por outro, assistiu-se a uma redução da percentagem da riqueza líquida nacional detida pelos mais ricos (que foram “prejudicados” por um desempenho menos expressivo dos restantes ativos, como participações financeiras em negócios próprios que pesam 25% no seu património).
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Esta realidade leva a que José Pedro Sousa, investigador da Nova SBE, conclua que as melhorias alcançadas na redução da desigualdade da distribuição da riqueza líquida das famílias nos últimos seis anos “tenha sido altamente alavancada pela população mais vulnerável.”
É isso que mostram também os números do BCE: se há seis anos os 50% mais pobres detinham 6,2% da riqueza líquida, no segundo trimestre de 2023 detinham 8,1% da riqueza global.
Contudo, João Cerejeira salienta que “a subida da riqueza dos mais pobres é, em parte, ‘ilusória’, não só pela limitada liquidez do ativo em causa, mas também pela dupla função desse mesmo ativo, que não acontece com um ativo financeiro ou uma segunda habitação, por exemplo.”
Desafios da desigualdade
Apesar das conquistas alcançadas nos últimos anos na redução das desigualdades na distribuição da riqueza, Portugal continua a ser um país de enormes disparidades sociais.
Os últimos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) revelam que, após vários anos de queda, a taxa de risco de pobreza em Portugal voltou a subir em 2023, afetando cerca de 17% dos portugueses, já após transferências sociais.
“Ao mesmo tempo que a desigualdade da riqueza diminuiu em Portugal nos últimos seis anos, o país teve um crescimento medíocre”, refere Ricardo Reis, professor na London School of Economics. “Estes dois factos têm alguma relação entre eles e são ambos, em parte, reflexo de uma política económica muito focada na redistribuição entre pessoas e pouco na prosperidade de todos”, diz.
Portugal é assim um país com amplas disparidades na distribuição de rendimentos e da riqueza das famílias, marcada por uma contínua e elevada concentração do “bolo” nas mãos de muito poucos.
Todavia, os dados do INE mostram também uma sociedade mais desigual no plano da distribuição de rendimentos, que fica expressa não apenas por uma subida de 1,7 pontos percentuais do coeficiente de Gini de rendimentos entre 2021 e 2022 (últimos dados disponíveis), mas também por um aumento de 15,4% em 2022 da distância entre o rendimento monetário líquido equivalente dos 10% da população com maiores recursos e o rendimento dos 10% da população com mais baixos recursos.
Portugal é assim um país com amplas disparidades na distribuição de rendimentos e da riqueza das famílias, marcada por uma contínua e elevada concentração do “bolo” nas mãos de muito poucos, com os 10% mais ricos a deterem cerca de 55% da riqueza líquida distribuída e os 50% mais pobres a serem donos de apenas 8,1% dessa riqueza. Mas os desafios não se esgotam aqui.
Considerando que grande parte desta riqueza, sobretudo por parte da população mais vulnerável, tem sido garantida por via da exposição ao mercado imobiliário, é expectável que os níveis de desigualdade alarguem-se no futuro, como resultado de um aumento do número de não proprietários nos últimos anos, em função da maior dificuldade em comprar casa com o agravamento da crise da habitação.
“O problema coloca-se para o futuro, porque hoje há uma grande percentagem da população (jovens) alheia do acesso à compra de casa por conta da subida do preço e dos baixos salários, e isso poderá levar a um aumento da desigualdade”, refere Pedro Brinca, professor da Nova SBE, notando que uma franja considerável da população ficará assim alheada do ativo que mais riqueza gerou no património das famílias nos últimos seis anos.
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Portugal baixou em 6,3% desigualdades de riqueza das famílias em seis anos à custa dos imóveis
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