Produção agrícola depende da sorte para não ter prejuízos

Apesar da crescente exposição a riscos climáticos, a maioria dos agricultores continua a confiar na sorte — ou na intervenção do Estado — deixando mais de 90% da produção sem cobertura seguradora.

A produção das principais culturas vegetais gerou cerca de 6,4 mil milhões de euros, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) referentes a 2023. Mas os seguros agrícolas cobriram apenas 509 milhões das explorações, de acordo com o Instituto de Financiamento de Agricultura e Pescas (IFAP). Significa que, cruzando os dados dos dois organismos, mais de 90% da produção não tem seguros contra geadas ou tempestades, por exemplo. Esta lacuna de proteção deixa o setor vulnerável e obriga frequentemente o Estado a intervir com recursos a fundos que não estavam orçamentados para esse fim.

A fragilidade da atividade já se refletiu nos resultados. Em 2024, os sinistros cobertos pelos seguros agrícolas de colheitas dispararam para mais de 22 milhões de euros, um aumento de quase 60% em relação ao ano anterior, segundo a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF). Ao mesmo tempo, a produção de seguros cresceu apenas cerca de 6% para 32.428 milhões, revela a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (APS).

O aumento do custo dos seguros reflete uma realidade mais profunda. “Não estamos a garantir eventos súbitos e imprevistos, mas principalmente o risco operacional das empresas”, aponta Luís Teixeira, diretor-geral norte da corretora de seguros F. Rego.

Seguradoras cautelosas

O mercado de seguros agrícolas é pequeno e concentrado. A Generali Seguros, líder durante anos com a marca Tranquilidade, detinha quase metade da quota de mercado, mas no ano passado decidiu suspender a emissão de novas apólices devido às dificuldades de operar na área.

O seu lugar foi ocupado pela Fidelidade, que passou de uma quota de 23,5% para 61,3%, apesar de também ter anunciado limitar a sua produção a clientes antigos. Também a operar neste setor, mas com quotas de mercado mais reduzidas, estão a CA Seguros (15,8%), a Caravela (14,1%) e a Una Seguros (6,3%) e, por fim, a Generali Seguros (2,6%). A mediadora Semper também atua no mercado com soluções específicas para culturas em estufas, cobrindo perdas de rendimento, estruturas e equipamentos. As principais coberturas incluem “incêndios, tempestades e granizo” às culturas, mas estendem-se a “furto, vandalismo, explosões e remoção de escombros”.

Clima: o inimigo comum

“A cultura não tem relevância nos sinistros, ou seja, estamos perante sinistros, na sua esmagadora maioria, causados por tempestades e que afetam vários tipos de culturas”, explica David Sousa, diretor da Semper. O fator de risco comum é o clima. Para reduzir os encargos dos agricultores, o Estado subsidia até 70% do custo dos seguros agrícolas através do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP). Esse apoio, comparticipado pela União Europeia (UE), cobre riscos como seca, incêndio e ventos fortes — mas só é acionado se o agricultor comprovar perdas superiores a 20% da produção média da cultura segura. Há ainda o mecanismo denominado “Compensação de Sinistralidade” que atribui às seguradoras uma compensação financeira quando as indemnizações ultrapassam entre 85% e 150% dos prémios. Para a compensação são considerados o seguro de colheitas, vitícolas de colheitas e de frutas e hortícolas. Este modelo tem data marcada para desaparecer: o executivo de Luís Montenegro comprometeu-se na legislatura anterior a terminá-lo até ao final de 2028.

Cultura da dependência afasta consumidores

O principal fator para os empresários não recorreram mais a seguros é a “cultura pública/política da subsidiação, que se tendo vindo a reduzir ao longo dos anos, continua a ser encarada como um mecanismo de resolução dos problemas”, afirma Luís Teixeira.

O responsável da F. Rego defende uma posição mais firme. “Se existisse uma posição clara do Governo de que — existindo subsidiação/apoio à contratação de seguros, acabaram-se os subsídios para as catástrofes (exceto os casos cabalmente justificados) —, possivelmente teríamos um verdadeiro incentivo ao funcionamento normal do mercado.”

Mas o papel do Governo no incentivo à contratação de seguros “é praticamente nulo”, diz. “O IFAP, como meio de subsidiação das apólices de colheitas integrantes do sistema, deveria ser um motor de disseminação nacional dos seguros de colheitas, permitindo uma mutualização do risco. Infelizmente, e sem a capacidade de disseminar a contratação de cobertura, as tarifas aumentam ano após ano, mantendo dentro do sistema de subsídio, por padrão, os clientes de maior risco”, afirma o especialista.

E na Europa?

Mesmo a nível europeu, a cobertura é baixa. Segundo um estudo da Howden financiado pela UE, apenas 20% a 30% das perdas agrícolas provocadas por eventos climáticos estão protegidas por seguros. No caso português, a seca — o risco dominante — representa mais de 60% das perdas não cobertas.

David Sousa sublinha que o setor está altamente exposto: “O setor agrícola apresenta um elevado grau de exposição ao risco de eventos climáticos adversos, com impacto direto e, muitas vezes, catastrófico.”

O setor agrícola português está a enfrentar um novo ciclo: mais risco, maior intensidade, e custos crescentes. Mas a cobertura por seguros continua mínima.

A Howden sugere medidas como a emissão de obrigações catastróficas e o reforço do resseguro público-privado para reduzir choques económicos. Recomenda ainda “a adoção de medidas de adaptação às alterações climáticas suscetíveis de serem alargadas e racionalizar os dados para uma melhor gestão de riscos”.

Enquanto isso, o país continua a confiar na esperança de que o mau tempo passe ao lado.

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