Susana Seca, a juíza com a árdua tarefa de domar o animal feroz Sócrates

A juíza que tem a cargo o julgamento da Operação Marquês tem a difícil tarefa de controlar o arguido Sócrates. Apesar de calma, a magistrada já teve de levantar a voz para meter ordem na casa.

  • Retratos é uma rubrica do ECO que, durante Agosto, traz diariamente o perfil de uma figura que se tenha destacado no último ano

A discrição da juíza Susana Seca – a quem calhou na rifa julgar um dos arguidos mais difíceis da justiça portuguesa, o ex-primeiro ministro José Sócrates – é tal que nem uma fotografia permitiu que fosse disponibilizada para este perfil. Muito menos prestar declarações a qualquer órgão de comunicação social. Essa foi a orientação expressa deixada pela magistrada que já antevia o que a esperaria: julgar o ex-primeiro ministro socialista José Sócrates, acusado de 22 crimes, entre os quais corrupção num de um dos julgamentos mais mediáticos da justiça portuguesa – a Operação Marquês – que começou a fazer manchetes de jornais em novembro de 2014, aquando da detenção em direto do ex-secretário geral do PS.

No fundo, a Susana Seca calhou (por sorteio eletrónico) um dos processos que mais ninguém gostaria de ter. Mas se alguns dos colegas mais próximos da magistrada temiam pela personalidade calma, paciente, dona de um tom de voz mais baixo do que a maioria, a verdade é que – ao longo das cinco sessões de julgamento realizadas em Julho, a presidente do coletivo (todo ele feminino) tem dado conta do recado. Já não se conseguem contar pelos dedos das mãos as vezes que teve de acalmar o tom arrogante, assertivo, insolente e argumentativo de Sócrates. E em que teve de levantar o tom de voz.

Mas também não se coibiu de pedir desculpa ao arguido quando o Ministério Público decidiu passar, na terceira sessão de julgamento – escutas telefónicas de uma conversa entre Henrique Granadeiro e José Sócrates – de julho de 2013 – em que se ouve o último a relatar uma conversa ao jantar com Mário Soares e Almeida Santos em que comentavam as relações sexuais de Salazar. Sócrates ficou ainda mais irritado, acusando o tribunal de produzir um “momento de puro voyeurismo”. O MP considerou pertinente a audição desta escuta – que continha “certos vernáculos” – para se perceber a proximidade da relação entre ambos. A juíza, porém, discordou dessa interpretação: “O tribunal lamenta o incidente ocorrido”.

A ironia é que, numa primeira fase, este julgamento começou por nem sequer calhar a Susana Seca: o sorteio inicial determinou que o processo coubesse a um coletivo liderado por uma colega sua — que pediu transferência para outro juízo do tribunal. Apesar de continuar a trabalhar no mesmo edifício, a mudança permitiu-lhe escapar a este processo. José Sócrates não esperou pelo início do julgamento para apresentar uma queixa no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e bastou um dia para entrar em confronto com a juíza que acusou de “parcialidade” e “complexo de autoridade” depois de ter sido advertido e lembrado que só falava “quando o tribunal autorizasse”.

O ex-primeiro-ministro José Sócrates, à chegada ao Tribunal Central Criminal de Lisboa, no Campus de Justiça.Hugo Amaral/ECO

 

Seca, com 52 anos é uma juíza descrita pelos colegas como “discreta e trabalhadora” e “avessa a exposição pública”. No início da carreira tentou entrar para a Polícia Judiciária, mas chumbou no teste psicológico. Chegou a trabalhar como jurista da DECO e foi advogada durante cinco anos antes de ingressar na magistratura, onde, no espaço de três anos, proferiu 1.600 decisões e 66 acórdãos, apesar da especialização na área criminal só ter ocorrido há cerca de uma década.

Seca, que teve bom com distinção na última avaliação do Conselho Superior da Magistratura, considerou “extemporâneo” aceitar a sugestão do Tribunal Central de Instrução Criminal para juntar ao processo principal o mini caso que sobrou da decisão instrutória de Ivo Rosa em que Sócrates e Santos Silva foram pronunciados por três crimes de branqueamento de capitais. Tudo para evitar novos adiamentos num processo que demorou 12 anos a chegar a esta fase de julgamento.

Os primeiros passos a sério da juíza nos tribunais portugueses começaram a ser dados em 2008, quando começou a fazer o estágio no Tribunal de Sintra. Foi ainda em julho desse ano que obteve a sua primeira colocação como juíza efetiva, ao rumar ao Tribunal de Condeixa-a-Nova, permanecendo nessa comarca do distrito de Coimbra durante dois anos.

Em 2012, conseguiu regressar como auxiliar a Sintra, mas ficou apenas um ano no Juízo de pequena e média instância cível e criminal, voltando a mudar de tribunal em 2013. Novamente no distrito de Santarém, desta feita em Benavente, cumpriu dois anos nesta localidade até que em 2015 conseguiu finalmente voltar à área metropolitana de Lisboa, embora a ‘saltitar’ de comarca em comarca. Entre 2015 e 2018, Susana Seca passou pelo Juízo de Instância Local Criminal de Cascais, pela secção local criminal do Tribunal de Sintra e pelo Juízo de Instância Local Criminal do Seixal. Só há sete anos é que se fixou, finalmente, no Campus da Justiça e desde 2022 no Juízo Central Criminal de Lisboa.

Mas a juíza já tinha ‘chamado à atenção’ ao condenar uma jornalista do Correio da Manhã pelo crime de desobediência depois de a estação televisiva ter divulgado imagens do interrogatório judicial a Miguel Macedo, o ex-ministro do PSD que acabou por ser julgado e absolvido no caso dos vistos gold.

A magistrada justificou a condenação a uma pena de multa com o facto de a jornalista não ter pedido autorização para transmitir as imagens. Foi a primeira vez que um jornalista foi condenado em Portugal por divulgar este tipo de imagens. Cinco anos depois destes acontecimentos, em novembro de 2024, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou que esta decisão de Susana Seca “não era necessária em democracia” e violava o direito “à liberdade de expressão”.

Outro dos processos mediáticos que foi parar às mãos da magistrada foi, no final de 2023, a condenação a internamento compulsivo um homem que ameaçou matar o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Em 2019, absolveu o Benfica de disputar um jogo à porta fechada. O clube tinha sido punido pelo Instituto Português do Desporto e Juventude por apoiar as claques Diabos Vermelhos e No Name Boys, que não estavam registadas neste organismo, e pela colocação de tarjas e bandeiras em zonas restritas do estádio da Luz, em Lisboa.

Colegas da magistrada dizem que é muito exigente com a prova, e, também por isso, faz julgamentos muito demorados. O que, neste caso concreto do Sócrates, não se tem vindo a verificar. Já chegou a cortar a palavra a advogados e ao arguido inúmeras vezes.

Logo na primeira sessão, a 3 de julho., a defesa de Sócrates fez três requerimentos e inúmeras reclamações e pedidos de nulidade – incluindo a tentativa de afastar a juíza – por várias questões processuais formais. Mas se, no início, a juíza manteve a calma e compostura, a meio da manhã decidiu manter a ordem na sala: “Quem preside ao tribunal coletivo sou eu, não é o senhor!”, disse em tom agressivo e professoral. Logo de seguida, José Sócrates sorria. Perante isto, a juíza decide ordenar que os atos processuais “que manifestamente e abusivamente possam embaraçar ou protelar os trabalhos” podem levar a advertimentos ou, eventualmente, “à retirada da palavra”.

“Vamos ficar muito claros quanto a isso. Não é o senhor doutor que decide quando fala nem é o arguido que decide quando fala”, diz a magistrada, dirigindo-se a Pedro Delille, advogado de Sócrates. Susana Seca, em tom de raspanete, avisou que não vai “compactuar com os instrumentos que atrasam o andamento do processo. O senhor doutor não pode desrespeitar o tribunal coletivo!”, diz a juíza, protagonizando o momento mais tenso da manhã.

Mas o episódio mais insólito acabou por ser a saída de Sócrates da sala de audiência (quando a sessão começara apenas há cerca de meia hora) para ir à casa de banho, sem pedir autorização. Mas esta saída não foi logo notada. Ao questionar o seu advogado sobre o paradeiro do cliente, a juíza fica visivelmente incomodada e diz: “Pediu autorização para sair da sala?”, questionou Susana Seca. Regressado à sala, Sócrates pediu para prestar declarações mas o pedido foi recusado. “Não, este não é o momento. Tem de se sentar como os restantes. Tem de se sentar e aguardar o momento. Neste momento, o tribunal não lhe dá a palavra”, disse a juíza. Esta frase foi repetida em simultâneo com a insistência de Sócrates, em jeito de desobediência. “A senhora juíza não me dá a palavra, é isso? O tribunal não me dá a palavra e ainda me adverte?”, questionou Sócrates.

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