
2026 à vista: Juros altos, dólar frágil e a prova de fogo da dívida mundial
Se Portugal consolidar o estatuto de confiança , o país poderá não só resistir à pressão das yields, como até emergir entre os ganhadores de uma nova era de seletividade no financiamento soberano.
O último ano trouxe um choque silencioso, mas profundo aos mercados financeiros: as rendibilidades da dívida pública dispararam nos Estados Unidos, na Europa e até no Japão, sinalizando o fim de um ciclo de financiamento barato que se prolongou por mais de uma década.
Nos EUA, a yield dos Treasury a 30 anos ultrapassou a fasquia dos 5%, níveis que se aproximam daqueles vistos no início do século (de notar que no ano 2020 – ano da pandemia – o valor estava à volta dos 1,2%). Na Europa, o Reino Unido vê as yields da dívida a 30 anos rondar os 5,7%, máximos de 1998, enquanto França e Alemanha registam subidas semelhantes, pressionadas por défices estruturais. Na Alemanha passamos nos últimos 10 anos de yields negativas (-0,19% em 2016) para valores já acima dos 3% (3,30% atualmente). Em França, que passa pelo teste de ser a “nova Itália” no mercado de divida, temos uma yield de 4,38% (um valor a aproximar-se perigosamente dos níveis que tivemos durante a grande crise financeira de 2008). No Japão, país que durante décadas viveu num regime de taxas quase nulas, a dívida a 10 anos ronda 1,6% e a 30 anos atingiu máximos históricos, após o Banco do Japão abandonar o controlo da curva de rendimentos (política em vigor entre 2016 e 2024 e que manteve as taxas de juros de longo prazo sob “controlo administrativo”).
Este movimento sincronizado não resulta apenas da ação dos bancos centrais, mas do regresso em força dos chamados bond vigilantes (termo criado nos anos 80 por Ed Yardeni), os investidores que punem governos com políticas orçamentais pouco credíveis, exigindo prémios de risco mais elevados. O que era uma complacência tolerada durante anos, com abundância de liquidez e programas de compra de ativos, tornou-se insustentável num contexto de défices crónicos e inflação persistente. A consequência é clara: os Estados enfrentam custos de financiamento mais pesados no longo prazo, e a disciplina orçamental volta a ser o principal critério de confiança dos mercados.
Esta questão está também intimamente ligada ao papel do dólar como moeda de reserva global. Em períodos de incerteza, normalmente, a procura por Treasuries reforça a posição do dólar como ativo dominante, garantindo aos EUA uma vantagem estrutural face a outras economias. Contudo, esse estatuto convive hoje com sinais claros de fraqueza: desde o início do ano, o dólar tem perdido força nos mercados cambiais, penalizado pelo alívio das expectativas de política monetária e, sobretudo, pelas tarifas aduaneiras impostas pela administração Trump, que alimentaram receios de menor dinamismo no comércio mundial e abriram espaço para que moedas concorrentes se valorizem. Este duplo movimento — reserva global num contexto de stress, mas vulnerável a políticas internas e a tensões comerciais — cria um paradoxo que tenderá a marcar a trajetória financeira até 2026.
Mas há um outro lado desta equação. O aumento prolongado das taxas de juro, enquanto sustenta o dólar em momentos de fuga para a segurança, tem exposto fissuras internas na própria economia americana, em particular no mercado imobiliário comercial. Desde a pandemia, o segmento dos escritórios entrou em crise estrutural, com taxas de ocupação em mínimos históricos devido ao teletrabalho e à reorganização das empresas. Os CMBS (Commercial Mortgage-Backed Securities), instrumentos que reúnem créditos hipotecários comerciais e são vendidos a investidores, registaram uma deterioração progressiva, com a taxa de incumprimento a subir de forma contínua desde 2020,
Em agosto deste ano, a taxa de incumprimento dos CMBS de escritórios atingiu 11,7%, marcando o sexto aumento consecutivo mensal. Este aumento foi impulsionado por dificuldades nos setores de escritórios, com o saldo total de incumprimentos a atingir 44,1 mil milhões de dólares. E porque é que este tema é relevante? Porque o aumento das yields dos Treasuries agrava este quadro: com juros mais altos, refinanciar dívidas imobiliárias torna-se mais caro, elevando o risco de incumprimento de proprietários e fundos expostos ao setor dos escritórios.
Assim, a interligação entre dívida pública, dólar e mercado imobiliário é hoje evidente. Rendibilidades mais elevadas significam dívida soberana mais cara, mas também taxas de desconto superiores em ativos privados, pressionando as “valuations” e ampliando perdas potenciais em setores alavancados como o imobiliário. Ao mesmo tempo, o estatuto do dólar garante que o choque é absorvido primeiro fora dos EUA, mas não elimina os riscos na economia americana, sobretudo num segmento como os CMBS, onde os incumprimentos já refletem a dificuldade em adaptar um mercado físico às mudanças de comportamento pós-pandemia das empresas de grande dimensão (na sua maioria na área dos serviços e tecnologia).
Logo, o cenário global será condicionado por esta equação tripla: governos a braços com custos de financiamento mais altos, um dólar em tensão entre a força estrutural de moeda de reserva e a fragilidade decorrente da política comercial, e um mercado imobiliário comercial americano onde o incumprimento funciona como barómetro da pressão dos juros elevados. O que une estas peças é a mesma mensagem: a era da abundância monetária acabou, os investidores voltaram a exigir disciplina e a confiança tornou-se o ativo mais escasso. Se as principais economias falharem em garantir credibilidade, a conta a pagar em termos de crescimento será inevitável e mais pesada do que se imagina.
Portugal surge neste contexto como um caso particular. Após anos de consolidação orçamental, o país conseguiu não apenas reduzir défices, mas alcançar excedentes primários consistentes, reforçando a perceção de disciplina fiscal. Esse desempenho diferencia-o de outros países europeus com trajetórias mais frágeis e pode transformá-lo num destino preferencial para investidores em busca de estabilidade.
Embora continue altamente endividado, Portugal beneficia da reputação de “bom aluno”, o que pode funcionar como refúgio relativo num cenário em que os bond vigilantes voltam a marcar o compasso dos mercados. Se essa confiança se consolidar, o país poderá não só resistir melhor à pressão das yields, como até emergir entre os ganhadores de uma nova era de seletividade no financiamento soberano. A ver vamos se o conseguimos fazer!
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