Editorial

A acusação disto tudo

A acusação do Ministério Público a Ricardo Salgado & companhia (afinal, está em causa um crime de associação criminosa) é uma peça de história contemporânea, de regime.

Os números são astronómicos, a acusação é demolidora. A acusação do Ministério Público a Ricardo Salgado e a mais 17 arguidos singulares e oito sociedades é uma peça de história, da história contemporânea política, económica e empresarial do país, de regime. E sem surpresa, mas descrito com o pormenor e detalhe que justifica os seis anos de investigações, Ricardo Salgado é acusado de associação criminosa, isto é, de montar uma rede de interesses e de cúmplices dentro do grupo que serviu para tapar os buracos financeiros, para manter o poder e para capturar, ele próprio, património do banco e de clientes.

Ricardo Salgado é acusado de 65 crimes: um de associação criminosa, 12 crimes de corrupção ativa no setor privado, 29 crimes de burla qualificada, 7 crimes de branqueamento de capitais, um crime de manipulação de mercado, seis crimes de infidelidade e nove crimes de falsificação de documento. Na acusação com mais de quatro mil páginas, a equipa de procuradores (sete) liderada por José Ranito foi obrigada a viajar pelo mundo para descobrir e mapear as várias rotas do dinheiro. Por praças offshore e por sociedades diversas que permanecerem ativas durante anos e cujos financiamentos se tornaram insustentáveis quando a crise rebenta e se cortaram os mecanismos que permitiam a manutenção artificial de um grupo falido.

A acusação é uma acusação, é a convicção do Ministério Público sobre as responsabilidades criminais de Ricardo Salgado, de Amílcar Morais Pires e de mais um conjunto de cúmplices singulares que terão levado à perda de mais de 11.8 mil milhões de euros. À falência de um grupo, à destruição de uma família e do seu bom nome. Seis anos são muito tempo e agora serão mais uns quantos anos para se fazer justiça. Salgado vai ter oportunidade de se defender, assim como todos os arguidos, mas agora não chegarão respostas genéricas, em tribunal terão de responder caso a caso a cada uma das acusações.

O caso GES/BES ainda não acabou, a seguir virão mais casos extraídos desta acusação — oito, entre eles o que se passou por exemplo na Venezuela — e virá sobretudo um julgamento que vai ser longo. Mas há aqui um antes e um depois. Está cristalizada uma acusação que, por ter mais de quatro mil páginas, vai demorar a ser digerida do ponto de vista jornalístico. Mas o nível de discussão já será outro, com informação pública. E vergonha pública também.

E notas soltas:

Ricardo Salgado e os outros arguidos vão defender-se, atacando. Quem lhes fez frente ou não lhes deu guarida.

Não deixa de ser uma coincidência histórica que esta acusação seja conhecida na semana em que Carlos Costa termina o seu mandato à frente do Banco de Portugal. Salgado bem pode repetir que foi o governador o responsável pela falência do BES. Não foi, e agora é o Ministério Público a dizê-lo, preto no branco. O Banco de Portugal poderia ter atuado mais cedo? Mesmo sem os instrumentos que tem hoje, sim, em novembro de 2013, quando ficou claro qual era o buraco do grupo e o governador tentou o famoso ‘ring-fecing’, confiou em quem já tinha mostrado não ser confiável. Mas se esse é o seu pecado, a intervenção em agosto de 2014, diz o Ministério Público, foi adequada e necessária. Dificilmente Carlos Costa poderia pedir mais.

Pedro Passos Coelho disse ‘não’ a Ricardo Salgado quando o antigo presidente do BES era ainda o Dono Disto Tudo (DDT). Disse não à intervenção da Caixa Geral de Depósitos para salvar o grupo e, perante o que se sabe das necessidades de capital do Novo Banco e do buraco que ficou por pagar no antigo GES (área não financeira), é claro até para os adversários de Passos Coelho o que seria a fatura escondida que o Estado teria de pagar, mantendo Salgado no poder.

José Maria Ricciardi é outros dos ‘vencedores’ desta acusação. Entrou em rutura com Ricardo Salgado em 2013, ninguém lhe deu o devido crédito ou atenção, talvez pela convicção de que o antigo DDT acabaria por conseguir manter o seu poder e a sua esfera de influência junto da política. Ricciardi não foi apenas ilibado de todas as suspeitas, acaba por ver reconhecida a razão que lhe assistia quando assumiu essa rutura.

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