A concertação social dos interesses

As mudanças das últimas décadas no sentido de termos uma sociedade democrática e economicamente desenvolvida vão-se esfumando. O que temos agora é a sociedade dos interesses instalados.

O artigo da semana passada mostrou como o Orçamento de Estado é um dos instrumentos para distribuir benesses com o dinheiro dos portugueses. O acordo de concertação social anunciado antes do Orçamento de Estado é uma das componentes dessa distribuição.

É importante que haja concertação social como factor de estabilidade, especialmente num período de crescimento elevado dos preços. O acordo assinado é de médio prazo porque, na teoria, permite que haja alguma certeza no enquadramento da actividade dos agentes económicos. Nesse sentido, um acordo pode ser positivo.

Mas o facto de um acordo ser assinado não significa, por si só, que deva ser enaltecido. Tal como as más políticas são piores do que não haver qualquer política, também os maus acordos são indesejáveis. Se um acordo de concertação social é mau, então é preferível que não exista.

O acordo de concertação assinado com os parceiros sociais em Portugal visa aumentar em 2% o crescimento anual da produtividade, alcançar 48% no peso dos salários no rendimento nacional e melhorar a competitividade internacional e, cito, “continuando a convergir com a União Europeia”. Por estes objectivos e pelo seu conteúdo, o acordo tem problemas de fundo que o tornam indesejável. Por várias razões:

1. O acordo não garante estabilidade ao enquadramento da actividade dos agentes económicos: não resolve nenhuma das fontes de instabilidade como a subida dos preços ou das taxas de juro, não resolve o problema da dívida pública, não garante estabilidade fiscal, não reduz significativamente os custos administrativos e nem sequer contribui decisivamente para a competitividade da economia portuguesa. Por estes motivos se pode concluir que o acordo não adianta muito, a não ser para os objectivos políticos do primeiro-ministro. Mas esses não coincidem com os objectivos de bem estar da população portuguesa.

2. O acordo possui elementos indesejáveis que o tornam contraproducente. A diversidade de objectivos e a pseudo-abordagem “holística”, tão na moda entre os teóricos das políticas públicas, apenas traduzem uma mistura confusão de objectivos e de políticas. Hoje há um abuso claro da ideia da transversalidade das políticas que, em conjunto com a tal pesudo-abordagem “holística”, apenas leva a objectivos contraditórios e, por isso inalcançáveis em simultâneo, que reduzem significativamente a eficácia das decisões.

2.1 – A ambição de 2% é muito pobre para um país atrasado no contexto da OCDE e que necessita de crescer bem mais para convergir. A proposta que a SEDES apresentou falava em 3,5% ao ano e seria desejável que Portugal alcançasse mais. A falta de ambição do governo e a sua incapacidade em promover o crescimento económico pela estratégia errada que segue, é apenas a continuação da realidade dos últimos 20 anos que agrava o atraso no nível de vida dos portugueses.

2.2 – O peso de 48% dos salários no rendimento não tem qualquer justificação lógica a não ser imitar acriticamente a média da UE, como se isso fosse um ideal para o mundo e para Portugal. Não há outro argumento para se prosseguir este objectivo, e mesmo o igualitarismo tão caro aos socialistas não se alcança desta forma, pois os mais pobres são os pensionistas, não são os assalariados. Mas o mais grave é que a ênfase neste objectivo colide com o de se obter maior crescimento económico e maior competitividade internacional numa economia que necessita de trabalhadores produtivos no sector privado, mas que tem um governo que prefere premiar os funcionários públicos, e que precisa de recursos para que as empresas possam investir, crescer e ultrapassar uma dimensão critica mínima.

2.3 – O terceiro objectivo parte de uma premissa falsa: há 20 anos que Portugal não está a convergir com a UE, mas os parceiros sociais parecem não se importar em validar esta mentira no texto do acordo. A referência limita-se apenas a fins propagandísticos, o que os parceiros sociais aparentemente aceitam sem discutir. Isto é um mau sinal, indicando que não é um acordo entre partes iguais, mas um em que uma das partes que tem mais força para ditar as suas condições.

2.4 – A ideia de que a simplificação administrativa “… tem de continuar” torna-se ridícula quando se lê o conjunto de medidas apresentadas no ponto D, que não fazem mais do que aumentar a carga administrativa para as empresas com as “excepções”, as “declarações”, os “regimes de incentivos”, as “reduções selectivas”, os “instrumentos” e outras medidas que criam burocracia. Um acordo que promove mais burocracia e visa a simplificação é, ele próprio, uma contradição.

3 – A questão não é apenas a contradição entre objectivos, mas também se são apropriados à realidade da economia portuguesa. Portugal precisa de mais crescimento e quem o gera são as empresas e as famílias, não é o Estado. O Estado pode, pelas suas políticas inadequadas, prejudicar o crescimento. E tem-no feito frequentemente com a queda do investimento público, a política monetária desnecessariamente expansionista dos últimos anos, o endividamento exagerado, a burocracia e os gastos que requerem um contante aumento de impostos, ou seja, ao retirar aos geradores de crescimento – empresas e famílias – os meios para que possam impulsionar o desenvolvimento económico. As distorções, a burocracia e os impostos excessivos são as principais causas para o baixo crescimento da economia portuguesa nos últimos 20 anos, e para a divergência no rendimento dos portugueses, e todas são da responsabilidade governamental. O acordo não só não lida com nenhum destes problemas como até os agrava.

4 – Finalmente, a concertação social só é eficaz se contar com a participação activa de todos os agentes económicos relevantes. Se o acordo é assinado por partes numa situação de subserviência, como parece ter sido o caso, ou se for assinado por pessoas que se intitulam representantes dos trabalhadores e das empresas, mas que na realidade não os representam, o acordo perde a sua utilidade.

Ao aprovar este acordo, os representantes dos empresários votaram a favor da continuação das contribuições extraordinárias das farmácias, das empresas de energia, da banca, da saúde ou de outros impostos encapotados como as taxas e multas crescentes pagas aos reguladores. Apoiaram a manutenção da taxa de IRC mais alta da Zona Euro e a criação de um segundo imposto extraordinários sobre a energia. Defenderam que Portugal continue a ser o país da OCDE que mais retira capital às empresas, prejudicando o seu crescimento, e, por arrasto, o do bem estar dos portugueses. São estes os defensores dos interesses das empresas portuguesas? Não parece.

Por isso se torna relevante saber quantos são os trabalhadores portugueses que estão sindicalizados e, por essa via, estão representados na concertação social? No sector privado, onde trabalha 85% da população activa, são menos de 10% (de acordo com os “Quadros de Pessoal” publicado pelo Ministério do Trabalho e da Segurança Social). Com boa vontade, podemos dizer que 8,5% dos trabalhadores estão representados nas negociações e que os restantes 91,5% não estão. No Estado, a taxa de sindicalização não ultrapassa os 20%, o que dado o seu peso no total do emprego significa que mais 3% dos trabalhadores estarão representados nas negociações.

No entanto, apenas a central sindical UGT assinou o acordo. Não só a CGTP não o assinou, como o mesmo aconteceu com inúmeros sindicatos independentes que não estão integrados nas duas centrais sindicais. Perante isto, a única certeza que temos é que o número de trabalhadores representados na assinatura do acordo será muito inferior a 10% do total.

O mesmo se passa nas empresas. A CIP (Confederação Empresarial de Portugal) afirma representar 150 mil empresas com 1,8 milhões de trabalhadores. Esta representação resulta de todas as associações sectoriais que estão na CIP. O mesmo acontece com a CCP (Confederação de Comércio e Serviços de Portugal), que afirma representar 200 mil empresas com 2 milhões de trabalhadores. A CTP (Confederação do Turismo de Portugal) e a CAP (Confederação dos Agricultores de Portugal) não referem no seu portal quantas empresas representam.

Os números redondos da CIP e da CCP deixam dúvidas sobre a real representatividade das confederações empresariais e indiciam que estará exagerada. Um outro indício desta tentativa de sobre-representação é o facto de haver associações que pertencem a mais do que uma confederação. A AHRESP (Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal), por exemplo, é associada da CIP, da CCP e da CTP.

Mesmo aceitando que as confederações representam 200 mil empresas, significaria que menos de 20% dos 1,1 milhões de empresas e empresários estariam representados na concertação social. E mesmo que as empresas maiores estejam representadas, isso em nada altera o problema da representatividade dos que assinaram o acordo de concertação social.

Em suma, havendo uma representatividade global limitada e inferior a 20%, a relevância do acordo é muito limitada. Mas há outras questões que o fazem perder relevância, como o facto de vários dos “representantes” de empresas e trabalhadores que participam nas negociações serem socialistas, dividindo-se entre os interesses dos seus associados e os interesses do partido.

No meio de tudo isto não deixa de ser sintomático que os representantes dos empresários tenham apoiado este acordo e, mais curioso ainda, venham dizer que a carga fiscal vai diminuir. A essência do socialismo é subir impostos e criar burocracia. Isto acontece quase ininterruptamente desde 2016 e, aliás, os impostos já tinham aumentado antes com o pré-falência socialista. O que os leva agora a crer que vão baixar? Ingenuidade ou cinismo?

Ao aprovar este acordo, os representantes dos empresários votaram a favor da continuação das contribuições extraordinárias das farmácias, das empresas de energia, da banca, da saúde ou de outros impostos encapotados como as taxas e multas crescentes pagas aos reguladores. Apoiaram a manutenção da taxa de IRC mais alta da Zona Euro e a criação de um segundo imposto extraordinários sobre a energia. Defenderam que Portugal continue a ser o país da OCDE que mais retira capital às empresas, prejudicando o seu crescimento, e, por arrasto, o do bem estar dos portugueses. São estes os defensores dos interesses das empresas portuguesas? Não parece.

As mudanças das últimas décadas no sentido de termos uma sociedade democrática e economicamente desenvolvida vão-se esfumando. O que temos agora é a sociedade dos interesses instalados, que apenas procura avidamente ter acesso a mais dinheiro, seja dos portugueses ou dos alemães. Tudo isto em nosso prejuízo.

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