A digitalização é um desastre climático
A tecnologia inteligente está a deixar-nos cada vez mais burros – porque trocar bancos de dados por danos ambientais é de uma estupidez desmedida.
Um dos mitos mais bacocos deste século é a imagem de “tecnologia limpa”. A tecnologia pode ser muita coisa, mas limpa é que não é. Os centros de dados espalhados pelo planeta têm já um enorme custo ambiental que raramente é ponderado na discussão das indústrias mais poluentes. Há uma razão para isso: as análises setoriais tendem a ser feitas ao longo do tempo, medindo-se o impacto ambiental em décadas; ora, o crescimento das tecnológicas foi tão brutal neste século, e o dano que provocam ao ambiente é tão extremo, que a análise ainda estará por quantificar devidamente.
Já existem dados quantificáveis que fazem temer pelo futuro. A crescente digitalização da sociedade, com os triliões de equipamentos caseiros e industriais ligados à net; acrescente-se ainda o compromisso com o desenvolvimento das tecnologias de realidade aumentada e virtual, que implicam gigantescos blocos de dados a ser transferidos cada vez mais rápido; cubra-se tudo com a tecnologia 5G e o WiFi6, que implicam enormes redes digitais servidas por poderosos sistemas de gestão de dados. O valor total é uma imensa pegada ecológica.
Para colocar as coisas em contexto: as estimativas mais sérias apontam para que os centros de dados que alimentam a nuvem digital consumam 200 horas-terawatt por ano (o equivalente à África do Sul). O extremo crescimento que se antecipa vai fazer dessa mesma nuvem o quarto maior consumidor de energia no planeta (ao nível do Japão). Não deixa de ser irónico que grande parte deste consumo venha das tecnologias de aprendizagem computorizada (deep learning), que se inspiraram no cérebro humano – que tem uma impressionante eficiência energética.
Sim, está tudo cada vez mais “inteligente”. As televisões, as cidades, os transportes, os telemóveis são inteligentes – e os computadores estão quase lá. Mas os humanos estão cada vez menos espertos. Já não chega perguntar se precisamos de mandar tweets pelo frigorífico; a questão é outra: esta digitalização extrema da sociedade serve quem? Aos cidadãos não é de certeza. Serve garantidamente as empresas de tecnologia, que ficam com mais dados para vender mais produtos e serviços; serve os poderes tradicionais, que ficam com mais mecanismos para conhecer e controlar os seus cidadãos; e serve uma lógica de automação social cada vez mais dependente de robots e de inteligências artificiais. Ir apenas atrás do progresso vai matar-nos a todos, embora pelo meio enriqueça alguns poucos. É mesmo isto que queremos?
Estamos a tomar estas opções sem refletir sobre elas. Caminhamos para uma sociedade completamente automatizada porque nos dizem que esse é o caminho do progresso, como se essa fosse a nova religião unânime e universalmente reconhecida. E, mesmo que o progresso fosse o único caminho, porque é que a única forma de lá chegar há-de ser pela extrema digitalização? Não é, porque não tem de ser.
A tecnologia não é a resposta para tudo, especialmente devido aos problemas que cria – e a fatura ambiental já é uma das mais notórias. E há outras: as questões de direitos dos cidadãos, de proteção de minorias, de acesso ao trabalho e à educação… A lista é grande. Para pensarmos melhor sobre tudo isto precisamos de líderes que estejam aptos a debater o problema. Ainda não os temos.
Ler mais: Este artigo científico publicado no mês passado apresenta uma medida provocadora e interessante: fazer da eficiência energética um critério na avaliação de medidas propostas para a Inteligência Artificial. Ao mesmo tempo propõe o conceito de Inteligência Artificial Verde, que será aquela que não só não implica maiores necessidades computacionais como idealmente até as reduz. Este documento é apenas um exemplo de que é possível – e desejável – pensar fora da caixa em relação à tecnologia.
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