A doença de Alzheimer não é para todos

Um magistrado que estivesse perante o mesmo relatório mas com um arguido 'desconhecido', concluiria o mesmo? Até quando os magistrados vão estar reféns do que chamo de “efeito fuga de João Rendeiro"?

Há cerca de uma semana, o juiz Francisco Henriques – responsável pelo processo que julga Ricardo Salgado – decidiu emitir um despacho em que reflete sobre o que é a doença de Alzheimer e de que forma é que essa mesma doença afeta as capacidades cognitivas de um arguido. Neste caso, Ricardo Salgado, óbvio. Pormenor que não é irrelevante. Diz o senhor magistrado que a demência e o Alzheimer não são razões suficientes para que a capacidade de defesa do arguido estejam limitadas “de tal forma que o impeçam de se defender de forma plena”. E diz ainda que a falta de memória é própria dos seus 77 anos: “o ser humano na faixa etária do arguido sofre de natural decréscimo das capacidades cognitivas”.

Contradizendo, sem dó nem piedade, o que o relatório de um médico neurologista – repito – médico neurologista – diz acerca do que é a doença que afeta muitos portugueses e até, pasme-se, um ex-banqueiro que agora está a ser julgado por três crimes de abuso de confiança.

Ora, infelizmente por razões familiares, não preciso de ler sobre a doença de Alzheimer para saber que esta é um tipo de demência que provoca uma deterioração da memória, atenção, concentração, linguagem e pensamento.

E este foi o cenário apresentado, assinado e validado pelo médico de Ricardo Salgado. Diagnóstico que acompanha também centenas de Manueis, Antónios, Fernandas, Joaquinas ou Marias desta vida.

Mas, ao mesmo arguido a quem foi recusado um exame médico –- perícia que teria de ser pedida a uma entidade independente pelo tribunal – parece que não é ‘permitido’ ter demência ou Alzheimer. Dizem alguns especialistas em demagogia popular e diz o magistrado, dotado da sua sapiência em leis e direito, ao defender que “a deficiência cognitiva, ou seja, a incapacidade de reproduzir memórias, não é de todo impeditiva do exercício do direito de apresentar pessoalmente em julgamento a versão dos factos passados”, argumenta o juiz. Fundamentado em quê? Na sua opinião, no seu ‘palpite’.

O que pretendo concluir não é que Salgado sofre de Alzheimer. Não sou qualificada para tal, não é a mim que me compete avaliar isso. Mas pergunto-me: um magistrado que estivesse perante o mesmo relatório mas com um arguido ‘desconhecido’, concluiria o mesmo? Até quando os nossos magistrados vão estar reféns do que chamo de “efeito fuga de João Rendeiro”, que deixou a Justiça pelas ruas da amargura em termos reputacionais e em que qualquer medida que possa ser criticada pela demagoga opinião pública, é de evitar? Deveríamos parar um bocado, distanciarmo-nos do que são casos mediáticos ou não e pensar nas pessoas como pessoas. Todos nós estamos sujeitos a tudo isto. Criminosos ou não, suspeitos ou não de crimes. E essa, diria, é a essência da dignidade humana, que deveria permanecer na vida de todos. De todos mesmo.

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