A Economia ao contrário

Seria melhor se abordássemos os debates sobre política económica de forma intelectualmente honesta, com curiosidade e disposição para mudar de opinião.

Segundo o primeiro-ministro António Costa a 29 de Junho de 2023, “Hoje é mais ou menos claro que sobretudo o aumento dos lucros extraordinários tem contribuído mais para a manutenção da inflação do que as subidas salariais”.

É um facto contabilístico que os lucros aumentaram mais que os salários nos últimos anos. Mas isso não significa necessariamente que os lucros sejam a causa da inflação.

Uma explicação alternativa é que a inflação nos bens e serviços finais aconteceu por causa de um aumento simultâneo dos custos dos bens intermédios – como energia e matérias-primas – e da procura por bens e serviços, devido, por exemplo, aos apoios governamentais durante a pandemia. Neste cenário, a resposta adequada do banco central é elevar as taxas de juro para moderar a procura e reduzir a inflação. Isto é algo que temos observado, embora o Banco Central Europeu pudesse ter começado a aumentar as taxas de juro mais cedo.

A base desta explicação alternativa é a observação de que os preços dos bens e serviços finais tendem a mudar mais rapidamente que os salários. Assim, perante um aumento inesperado da procura, as empresas aumentam os preços, enquanto os salários se ajustam mais lentamente. Parte deste aumento dos preços é uma antecipação do aumento futuro dos custos, incluindo os salários quando são renegociados. Logo, é normal que os lucros e a inflação possam subir ao mesmo tempo, mas de forma temporária.

Nesta situação, a resposta da política monetária é subir as taxas de juro para minimizar a inflação resultante do aumento da procura. Já a inflação provocada por custos mais elevados de energia e matérias-primas é mais difícil de controlar por parte dos bancos centrais e deve ser tolerada por algum tempo. Se estes custos subirem de forma permanente, isso acabará por diminuir a procura e, consequentemente, a inflação.

Obviamente, pode não ser a procura a gerar a inflação e os lucros. Por exemplo, as empresas podem ganhar mais poder de mercado devido a factores tecnológicos ou regulatórios, ou até mesmo coordenar aumentos repetidos de preços de forma ilegal. Nestas circunstâncias, outras políticas económicas poderiam ser aplicadas, como fortalecer os direitos dos trabalhadores, controlar preços ou promover a concorrência, dependendo da causa.

Não tenho preferência por qualquer uma das explicações. Contudo, em Economia, é fundamental distinguir entre correlação e causalidade, precisamente porque, como disse António Costa “senão acertamos bem no diagnóstico a terapia raramente acerta”. Infelizmente, isto requer mais do que simplesmente interpretar dados contabilísticos de forma conveniente, mas sim estabelecer a causalidade económica com base em modelos teóricos e dados analisados de forma credível.

Ainda é cedo para sabermos definitivamente se os “lucros” (ou o aumento do poder de mercado) explicam a inflação ou se é a inflação (ou o aumento da procura) a explicar os lucros, ou quanto cada hipótese contribui. Há evidência empírica que mostra que a procura aumentou depois da pandemia (1, 2) e também existe um debate académico sobre o crescente poder de mercado das empresas nas últimas décadas. Estes dois factores podem interagir e certamente serão objecto de muita discussão. A minha leitura da investigação recente sobre este tema é que houve um aumento da procura que justifica a subida das taxas de juro e que os problemas relacionados com o poder de mercado são mais estruturais, e menos relevantes para uma questão de curto prazo como o aumento recente da inflação.

Claro que o erro de interpretar identidades contabilísticas não é apenas de António Costa. Por exemplo, existe um erro semelhante na interpretação da relação entre a quantidade de moeda e a inflação. A equação monetarista mostra que um aumento da quantidade de moeda leva a mais inflação, tudo o resto constante. Contudo, esta equação não diz como este aumento monetário é distribuído entre o nível de preços e a produção de bens e serviços. E não é óbvio que a produção fique constante, mesmo no longo prazo. Temos de ser claros nos nossos pressupostos e, idealmente, apoiá-los com dados, especialmente quando se tratam de debates académicos activos.

Infelizmente, a Economia é difícil. É útil usar dados e identidades contabilísticas no debate sobre política económica; contudo, temos de ter cuidado para não confundirmos estas relações com causas directas. Todos nós temos vieses que nos podem levar a uma interpretação errada dos dados, mas seria melhor se abordássemos os debates sobre política económica de forma intelectualmente honesta, com curiosidade e disposição para mudar de opinião. Isto contrasta com a mentalidade activista predominante hoje em dia. No entanto, o desejo de debater é também um impulso para aprender mais e, com alguma sorte, cometer menos erros.

Nota: Por opção, o autor escreve ao abrigo do anterior acordo ortográfico

  • Professor de Economia Internacional na ESCP Business School

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