A ‘governance’ das empresas

Quantas PME possuem administradores não-executivos independentes? O problema está na ausência de órgãos sociais que sirvam nas empresas como os arranjos constitucionais servem os Estados.

A recente polémica em redor do putativo “chairman” do Banco Português de Fomento (BPF) teve dois efeitos. Por um lado, ofuscou a substância da oferta do BPF (que finalmente começa a ser conhecida e que vai ao encontro do que aqui antecipei na semana passada). Por outro lado, a polémica não deixou de evidenciar os problemas de governo societário que as instituições portuguesas, públicas e privadas, grandes ou pequenas, continuam a exibir. Infelizmente, no que diz respeito a este último aspecto, o caso da semana está longe de ser único e reflecte a forma frequentemente leviana com que é tratada a questão da liderança institucional em Portugal. E na situação em apreço, ninguém saiu bem na fotografia.

A questão organizacional interessa-me desde há muito. Seja no sector público ou no sector privado, a forma como se estruturam as organizações, e as relações institucionais e profissionais que se desenvolvem no seu seio, são fundamentais ao sucesso (ou insucesso) final das mesmas. Sobre o caso particular do BPF, já aqui discuti as questões relativas ao seu governo societário. É, de resto, uma pena que essas questões societárias, tanto quanto hoje as vejo, não tenham sido devidamente acomodadas no desenho institucional do BPF. Ainda assim, haverá tempo para completar o que permanece ausente e a polémica talvez ofereça a oportunidade para isso.

A questão organizacional não se esgota em instituições de grande dimensão nem no sector público. Ela está também presente no tecido empresarial do sector privado, começando nas pequenas e médias empresas. Um dos melhores livros que li este ano chama-se “How Boards Work – And How They Can Work Better in a Chaotic World” da economista Dambisa Moyo. O livro retrata a experiência da autora, enquanto administradora não-executiva de diversas empresas cotadas, e mostra não só as situações com que os administradores executivos e não-executivos são confrontados, mas sobretudo o papel que os não-executivos em particular podem aportar às organizações.

No que diz respeito a funções executivas e não-executivas, há diferenças significativas entre o que acontece no mundo anglo-saxónico e em Portugal. No caso português, constata-se em geral uma predominância bastante elevada dos executivos sobre os não-executivos, ainda que o código das sociedades comerciais não faça grande distinção entre ambos. No mundo anglo-saxónico parece suceder o contrário: quer a intervenção dos não-executivos, quer a sua diferenciação formal tendem a ser maiores. E aqui jaz a primeira conclusão a retirar: muitas mais empresas deveriam poder beneficiar do sentido construtivamente crítico dos não-executivos, e muitos mais executivos (bem como sócios e accionistas) deveriam ser os primeiros a exigirem essa crítica construtiva aos não-executivos.

O governo societário não deve ser menosprezado, todavia, ele também depende da dimensão e propriedade empresariais. Nos últimos dias, o Prof. Fernando Alexandre publicou um interessantíssimo estudo sobre a atribuição dos fundos comunitários às empresas. Uma das conclusões apontadas tem a ver com a falta de eficácia, ou quiçá até o desperdício, de fundos atribuídos às microempresas. O Fernando questiona mesmo se valerá a pena financiar empresas que se mantêm como microempresas anos a fio. Refere ainda as empresas “ali no meio”, que já estão profissionalizadas, mas que são arredadas de um acesso mais generoso aos fundos. Em ambos os casos, são questões muito pertinentes e que nos levam à questão organizacional.

Seria interessante analisar quantas dessas empresas, nas duas situações apontadas antes, têm órgãos sociais estruturados e profissionalizados. O caso das microempresas será mais delicado, porque com excepção das “start-ups” que desde cedo beneficiam dos fundos de capital de risco e da supervisão que tipicamente vem associada, a maior parte continuam a ser empresas de patrão. O patrão manda e os outros só atrapalham, ponto final. Mas nas empresas de pequena dimensão, sobretudo aquelas que vão entrando no segmento da média dimensão, a situação muda de figura, sendo que estas empresas provavelmente beneficiariam de sistemas de governo societário mais robustos.

As políticas públicas de empreendedorismo colocam o enfoque em estratégias de crescimento. Há uma presunção de que todas as empresas querem crescer, porque são as firmas de alto crescimento que tendem a contribuir mais para o emprego e para o valor acrescentado. A verdade é que nem todas as empresas querem crescer. Isto acontece porque, por um lado, o crescimento nem sempre vem acompanhado de maior rentabilidade e, por outro, porque as próprias políticas públicas nem sempre premeiam o crescimento quando, por exemplo, limitam o acesso a determinados apoios a empresas de menor dimensão. O critério de governo societário poderia assim constituir alternativa, ou complemento, ao critério do crescimento.

No entanto, voltamos ao início do artigo: quantas pequenas e médias empresas (PME) possuem administradores não-executivos independentes? Quantas possuem conselhos fiscais atuantes? Em empresas familiares, quantas nomeiam administradores executivos fora do âmbito familiar? Quantas conhecem o código do Instituto Português de Corporate Governance? E quantas já separaram a gestão da empresa da sua propriedade? Note-se que o problema não está na dimensão familiar dos negócios – nas PME é até importante que a matriz familiar, a existir, seja mantida para não as descaracterizar repentinamente. O problema está na ausência de órgãos sociais que sirvam nas empresas como os arranjos constitucionais servem os estados: não só como freios e contrapesos, mas também como farol de ambição e sinal de compromisso.

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