A justiça, as pessoas e as empresas

  • Cecília Meireles
  • 28 Março 2023

Tudo o que passa a estar previsto no que toca a plataformas digitais exigirá uma intervenção muito mais frequente dos tribunais, o que deverá aumentar a litigância e o número de pendências.

Em Portugal, tornou-se um lugar-comum falar na lentidão da Justiça. Não deixa de ser surpreendente que tantos reconheçam o problema e que simultaneamente ele continue muito longe de ser resolvido. E as consequências desta morosidade são muito graves, quer para os cidadãos, que não conseguem ver reconhecidos os seus direitos em tempo útil, quer para as empresas, que não poucas vezes desistem de negócios ou se tornam na prática inviáveis enquanto esperam por uma decisão, quer para a sociedade em geral, que cada vez mais desconfia quando se fala de Justiça.

As causas são muitas e variadas e os diagnósticos são também diferentes consoante estivermos a falar, por exemplo, de direito administrativo ou de direito penal. E certamente que um só artigo, ou mesmo dez ou cem, não chegariam para abordar todos os assuntos.

Vale a pena aproveitar a ocasião para falar de um tema em concreto, que através de alterações legislativas vai introduzir alterações à prática e à vida de trabalhadores e empresas e, consequentemente, alterar as suas relações com a Justiça.

A Assembleia da República aprovou, no dia 10 de fevereiro, várias alterações à legislação laboral que intitulou como Agenda de Trabalho Digno. É um conjunto relativamente vasto de mudanças: muitas das quais – sem dúvida – bem intencionadas, outras muito justas, mas que em alguns casos poderão ter efeitos contrários ao que o legislador pretende ou antecipa.

Por exemplo, ao prever expressamente a impossibilidade de extinção dos créditos laborais por meio de remissão abdicativa, salvo através de transação judicial, percebe-se que a intenção seria proteger os trabalhadores de pressões – porventura ainda na pendência do jugo laboral -, mas urge questionar se, na prática, não se estará a limitar de sobremaneira a celebração de acordos de revogação.

Ou seja, se independentemente de qualquer acordo a que empregador e trabalhador cheguem, poderá sempre o trabalhador recorrer à via judicial para que lhe sejam reconhecidos (mais) créditos, isso não significa que o empregador terá bastante menos incentivo para promover um acordo? Não será mais vantajoso, em muitos casos, optar por esperar pela decisão judicial? E se for esse o caso, tal não significará, na prática, que o trabalhador acabará por sair prejudicado? Na verdade, apenas acabará (ou não!) por só receber os seus créditos quando a “justiça funcionar”. Bem sabemos que, provavelmente, passados anos…

Também seria interessante perguntar – uma vez que, quer esta, quer outras alterações, impelem à intervenção dos tribunais – qual será o reforço dos meios dos Tribunais de Trabalho, sem o qual dificilmente os efeitos pretendidos pela legislação poderão ser alcançados.

Tudo o que passa a estar previsto no que toca a plataformas digitais exigirá, do mesmo passo, uma intervenção muito mais frequente dos tribunais, o que deverá aumentar a litigância e o número de pendências. Se estes não tiverem meios para responder de forma ágil, tal significa que apenas os trabalhadores que possam esperar verão reconhecidos os seus direitos. Num sector em que muitos dos problemas que se quer atacar assistem a realidades de salários baixos, é bom de ver que poucos o poderão fazer.

São apenas dois exemplos, mas que creio bem demonstrativos de como, por vezes, a legislação bem intencionada pode acabar por ficar muito longe de resolver ou mitigar problemas. Ou até, na práctica, revelar-se contrária aos próprios fins.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

  • Cecília Meireles
  • Associada sénior da Cerejeira Namora, Marinho Falcão

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