A mixórdia parlamentar

É absurda a aprovação de legislação que não é acompanhada simultaneamente da sua regulamentação. Complica-se o que poderia ser simplificado, introduzindo incerteza jurídica sobre a economia.

Estive na Assembleia da República uma única vez na minha vida. Dessa experiência, em que assisti nas bancadas ao debate em plenário, retive a impressão de que a maioria dos deputados, durante as suas respectivas intervenções, pregavam aos peixes. De quando em vez, lá surgia alguém capaz de captar a atenção dos demais, mas, em geral, a atitude era de principesca indiferença perante quem discursava.

Mais ainda, senti uma atitude de desrespeito entre pares, na medida em que enquanto uns falavam, muitos outros se levantavam das cadeiras, entrando e saindo da sala, circulando, tagarelando como se estivessem no café, criando um ensurdecedor ruído de fundo. Talvez tenha sido um mau dia, mas fiquei deveras impressionado, pela negativa, e convencido de que o nível legislativo saído daquela balbúrdia não poderia ser senão de má qualidade. (na verdade, a única coisa que valeu a pena, para além da simpatia do deputado que me convidou para ali estar, foi a bica a 35 cêntimos – subsidiada pelos contribuintes como não poderia deixar de ser.)

Vem isto a propósito da votação que teve lugar há dias sobre a “contribuição por rotatividade excessiva” a pagar à Segurança Social pelas empresas que mais vierem a utilizar os contratos a termo. A proposta, apresentada pelo PS no grupo de trabalho das leis laborais, foi aprovada somente com os votos favoráveis do próprio PS. Votou contra o PCP. Abstiveram-se BE, CDS e PSD.

Trata-se de uma medida que foi discutida há cerca de um ano, depois de ter figurado (ainda que numa forma bastante diferente) no programa do PS às legislativas de 2015, e que só agora será legislada e regulamentada. Pelo caminho, na mesma votação do grupo de trabalho sobre as leis laborais, foi também revogado o artigo 55º do código dos regimes contributivos do sistema previdencial da segurança social, que estava em vigor, através do qual o legislador já havia definido penalizações e prémios associados à utilização de contratos a termo.

A respeito da revogação do referido artigo 55º, que ocorreu a par da votação principal sobre a contribuição relativa à rotatividade excessiva, é de referir que a mesma foi aprovada com os votos favoráveis de PS e PCP. Votou contra o BE. Abstiveram-se PSD e CDS. Ao ler a notícia, e observando os diferentes sentidos de voto entre votações, fiquei baralhado. E mais baralhado fiquei ao ler que no clausulado da nova contribuição, face ao que constava na ideia original, foi ainda adicionada uma nova condição de salvaguarda, em reforço daquelas que já constavam no artigo 55º do código em vigor, segundo a qual ficariam protegidos da taxa de rotatividade os contratos celebrados “por imposição legal ou em virtude dos condicionalismos inerentes ao tipo de trabalho ou à situação do trabalhador” (fonte ECO: “Parlamento aprova nova taxa sobre empresas com excesso de contratos a prazo”). Esta nova condição de salvaguarda terá sido apoiada pelo PSD, CDS e PCP, tendo votado vencidos o BE e o PS na tentativa de a eliminar.

Enfim, deixo aos leitores a laboriosa interpretação dos diferentes sentidos de voto que se alinharam naquelas três votações distintas, mas relacionadas entre si. Todavia, não deixo de salientar a posição contraditória do PS, o partido que tomou a iniciativa legislativa, ao ter aprovado (sozinho) um sistema muito mais complexo e de difícil aplicação – na prática, a condição de salvaguarda inviabilizará a aplicação da medida, além de que o indicador sectorial, com base no qual o sistema de penalizações e bonificações funcionará, assenta ele próprio em bases frágeis – do que o sistema anterior.

Recorde-se que o artigo 55º, inscrito no código que estava em vigor, previa uma penalização sobre os contratos a termo equivalente a um acréscimo de três pontos percentuais na contribuição social a pagar pela entidade empregadora e uma redução de um ponto percentual no caso dos contratos por tempo indeterminado. Mas este artigo, encontrando-se em vigor desde 2010, nunca chegara a ser implementado por falta de regulamentação da lei.

Bem sei que o trabalho parlamentar dos nossos estimados deputados inclui muitas etapas antes de ser levado à votação em plenário, por isso, é natural que, uma vez lá chegado, seja frequentemente objecto de deliberação mecânica por parte dos grupos parlamentares. E neste caso em concreto a missa ainda vai no adro.

Ainda assim, o exemplo anterior é um bom exemplo do que se não deve fazer e dos vícios de um processo de deliberação incoerente. Porque das três votações, relacionadas entre si, saiu provavelmente o pior dos cenários, ou, dito de outro modo, saiu o pior, não de dois, mas sim de três mundos. Não se rejeitou nem se aprovou coisa alguma de real aplicação. Pelo contrário, mitigou-se uma coisa – na verdade uma coisa que, estando no papel, nunca foi implementada – complicando-a e tornando inverosímil a sua adesão à realidade. A letra da lei, que estava morta, morta ficou.

Note-se que, nesta crítica, não está em causa a defesa de uma proposta ou de outra. Está, sim, em causa que no caso de não se defender coisa alguma, como parece ter resultado nesta mixórdia parlamentar, o melhor é não ter lá nada.

Na minha opinião, é absurda a aprovação de legislação que não é acompanhada simultaneamente da sua regulamentação. Complica-se o que poderia ser simplificado, introduzindo incerteza jurídica sobre a economia, cuja dinâmica não se compadece com os vagares do legislador, e perde-se de vista o objecto sobre o qual se está a legislar.

Assim, das duas uma: ou se faz acompanhar a legislação da sua regulamentação no preciso momento em que a mesma entra em vigor, ou se aceita a auto regulação da legislação enquanto princípio orientador da monitorização que dela se faz. Qualquer uma das duas alternativas promoveria um processo legislativo de maior qualidade e uma maior eficiência administrativa. Constituiria também um bloqueio à incontinência legislativa que, na ausência de um bom processo, tenderá a acontecer, numa competição político-partidária em que, frequentemente, conta mais apresentar serviço do que fazer um bom serviço. Como em tudo na vida, a substância conta, mas a forma também.

Volta e meia são revogados uns tantos artigos legislativos com vista à simplificação e actualização dos códigos em vigor. Porém, ao manter-se em funcionamento um modelo de aprovação de leis e de regulamentos em momentos distintos, o número de artigos que um dia terão de ser revogados continuará a crescer. O único resultado será a complexificação do ordenamento jurídico e a acumulação de custos de contexto.

Este vício processual é tanto mais relevante, na medida em que a avaliação de impacto regulatório – isto é, a quantificação do custo de implementação das leis por parte dos agentes económicos envolvidos – constitui uma componente cada vez mais importante do processo legislativo.

Sendo a instabilidade legislativa um obstáculo à avaliação de impacto regulatório, é também um obstáculo ao progresso do país. Seria, portanto, de elementar bom-senso que os senhores deputados entendessem os benefícios de leis bem feitas e se deixassem de jogos florentinos quando as discutem.

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