As consequências da Covid-19 para a próxima década
Na sua reposta a esta crise, a UE deverá investir 750 mil milhões de euros, verba à qual se soma um valor superior a um milhão de milhão de euros, proveniente do European Green Deal .
O modo como respondermos à crise – sanitária, económica, social e psicológica – COVID-19 será determinante do mundo que teremos em 2030. Se a última crise, de 2008-2011, expôs sérias fragilidades dos sistemas financeiros e se procurou resolver alterando algumas das suas regras e injetando liquidez nas economias, de modo a manter os níveis de produção, consumo e investimento, desta vez parece ser consensual que a crise COVID-19 expõe fragilidades bem mais profundas e que a resposta terá de ser mais estrutural, disruptiva e de longo prazo.
Estima-se que haja cerca de 30 mil coronavírus no reino animal, sendo que não se sabe quantos poderão ser perigosos e contagiosos para a espécie humana. As zoonoses – a que estes podem dar origem –, é bom lembrar, não são fatalidades da natureza, como são um tsunami ou um vulcão. Elas resultam da ação humana e serão cada vez mais frequentes, devido às alterações climáticas, aos fenómenos crescentes de urbanização e globalização, e à pressão sem precedentes que estamos a exercer sobre os ecossistemas e a biosfera, fruto do crescimento populacional e das expetativas quanto a estilos de vida da generalidade dos cidadãos, excessivamente materialistas e assentes no consumo de bens.
Neste momento, parece ser (finalmente) consensual que só há uma forma de garantirmos o bem-estar e a qualidade de vida das gerações futuras: assegurando que a resposta à atual crise acelera a transição para modelos de desenvolvimento sustentáveis, isto é, para sociedades com comportamentos e empresas com modelos de negócio que sejam promotores de maior coesão social e regeneradores da biosfera.
Na sua reposta a esta crise, a UE deverá investir 750 mil milhões de euros, verba à qual se soma um valor superior a um milhão de milhão de euros, proveniente do European Green Deal e a investir até 2030. Ou seja, há meios financeiros com escala – e nunca na sua história a Humanidade teve tanto conhecimento ao seu dispor.
A publicação do WBCSD sobre as consequências da crise COVID-19 é um excelente contributo para a construção de soluções duradouras, ao apontar várias fragilidades ao nosso atual modelo de desenvolvimento e sugerir soluções concretas para a sua transformação necessária e urgente, que deve ocorrer ao longo desta década.
Tudo somado, temos como desafio a reinvenção do capitalismo, um sistema que nos deu acesso a níveis de riqueza e bem-estar únicos na história da Humanidade, mas com externalidades sociais e ambientais que não podem ser consideradas externalidades, mas sim centralidades, sob pena de comprometermos a qualidade de vida das futuras gerações e colocarmos em risco as nossas democracias liberais.
Vejamos algumas das conclusões desta publicação do WBCSD:
• A crise COVID-19 salientou as desigualdades já existentes entre diferentes grupos: os mais idosos são mais vulneráveis do que os mais novos, os homens e pessoas obesas estão mais expostos do que as mulheres e as pessoas não obesas, os ricos estão muito mais bem protegidos do que os pobres, e quem tem relações laborais estáveis tem uma estabilidade muito superior a quem não tem (a precariedade de muitas formas de trabalho atuais, próprias do novo fenómeno da gig economy, do qual dependem muitos millennials, constitui um enorme desafio em contextos de crise);
• Cadeias de valor e de abastecimento globais, assentes em princípios just-in-time, podem ser mais eficientes, mas não só têm maior pegada ambiental, como têm um risco adicional face a cadeias de abastecimento mais locais;
• O mundo carece de mecanismos de governance internacionais integrados, que garantam a cooperação, a eficácia e a eficiência global das respostas. Se, por um lado, esta crise nos deu uma maior consciência coletiva dos desafios globais e contribuiu para um maior sentimento de comunidade e solidariedade locais, por outro, também evidenciou dimensões sistémicas que exigem estruturas de governance mais macro e integradoras.
• O mundo e o nosso bem-estar estão demasiado dependentes de um modelo de desenvolvimento assente numa lógica de crescimento económico contínuo, quando é fundamental que se reduzam os atuais padrões de produção e consumos, para que se reduza a pressão sobre o capital natural – em 2019, consumimos 100 mil milhões de toneladas de recursos naturais e produzimos mais de 32 mil milhões de toneladas de resíduos. Obviamente, para não dependermos do crescimento contínuo, é fundamental que a riqueza seja mais bem distribuída, ou seja, não é sustentável que as 26 pessoas mais ricas do mundo tenham a mesma riqueza que metade da população mundial (i.e. 4 mil milhões de pessoas);
• Há hábitos que esta crise poderá ajudar a mudar, entre os quais, fomentar o teletrabalho, diminuir o consumo de bens e serviços, contribuir para modos de vidas mais locais, e acelerar a transformação digital. Por exemplo, no que diz respeito ao teletrabalho, tudo o resto constante, menos deslocações significa reduzir a poluição e as emissões de gases com efeito de estufa – algo que não passou despercebido em parte nenhuma do mundo e que todos apreciámos como sendo umas das consequências positivas da crise COVID-19;
• Por último, é fundamental que os negócios do futuro assentem em 3 Rs, isto é, têm de ser Responsáveis, Resilientes e Regenerativos. Já não basta mitigar os impactos sobre a biosfera e as comunidades. Há que ir mais longe! Os negócios do futuro serão os que integrarem estes 3Rs nas suas estratégias e modelos de negócio, e contribuírem para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 das Nações Unidas e para o Acordo de Paris sobre o clima. Para tal, as empresas devem adotarem science-based targets relativamente ao clima e à biodiversidade, e adotarem hábitos mais exigentes de avaliação do seu impacto e reporting.
Em conclusão, as crises são, por definição, excelentes momentos para que se adotem novas regras e visões, nomeadamente, para se propor um novo contrato social, que seja mais equitativo do ponto de vista social e que seja regenerativo da biosfera. Se não formos capazes dessa transformação, as próximas crises serão cada vez mais dramáticas e os seus impactos cada vez mais profundos e duradouros.
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