As novas linguagens da gestão de pessoas: da felicidade à paz positiva

  • Helena Marujo
  • 14 Abril 2020

Veja-se a força que tem hoje em RH a palavra “paixão” ou como o bem-estar passou a ser uma narrativa presente.

Num tempo de velocidade e rivalidades, de verdades imprecisas e com aditivos, e de equilíbrios e harmonias tão delicados quanto desejados, o mundo dos negócios tem visto emergirem novas línguas francas, que abrigam o vigor de funções e práticas diferenciadoras.

É esse o caso da centralidade dada à subjetividade humana, em especial à gestão dos afetos. Veja-se a força que tem hoje em RH a palavra “paixão” ou como o bem-estar passou a ser uma narrativa presente. Talvez um dos expoentes máximos deste movimento tenha sido a migração da felicidade da esfera privada para o espaço público, tendo o mundo laboral passado a ser-lhe um terreno fértil (Neto, 2019). Os novos Chief Happiness Officer (CHO), por exemplo, potenciam e medem as emoções benignas dos seus trabalhadores, e reavivam a anomalia da insatisfação, da desmotivação, da apatia, do stress e do desalento, a par de outros afetos menos favoráveis para a boa vontade no trabalho.

Vivendo nós um momento de “entendimento generalizado de que as empresas são empreendimentos egocêntricos, focados nos contratos, que destroem a cidadania e delapidam os recursos comuns” (Marujo, 2019, p. 60), a felicidade corre o sério risco de passar a ser uma forma importante de re-rebranding e de makeup, usada para o for-profit em vez do for-benefit (Zamagni, 2018). Empresas que se centrem apenas nos lucros e impeçam condições humanas, sociais e ambientais saudáveis e íntegras deverão ser escrutinadas quanto ao uso das narrativas e das práticas de felicidade.

Ela, a felicidade, parece ser, de facto, ótima para o negócio. Os números apontam para bons impactos na produtividade, no compromisso, na redução de presentismo, baixas médicas e turnover, na exponenciação de comportamentos pré-sociais e em capacidade elevada para navegar de forma mais resiliente na adversidade, tudo produtos daqueles que se dizem sentir mais felizes (e.g., Baker, Greenberg & Hemingway, 2006; Dutschke & Dias, 2019; Fisher, 2010; Rego, Ribeiro & Cunha, 2010).

Tendo pessoalmente sustentado as novas narrativas e práticas de gestão de pessoas com base na subjetividade, na qualidade das emoções e das relações, e no propósito associado ao trabalho, também tenho sido uma voz resoluta prevenindo quanto aos potenciais riscos da instrumentalização da felicidade e do bem-estar, e da latente manipulação das emoções das pessoas pelas forças corporativas – empurrando o/as trabalhadore/as para que sejam economicamente mais eficientes e politicamente dóceis, e silenciando as dores, fraquezas e toxicidades organizacionais.

Forçar emoções e conversas apenas em redor do que é “positivo”, ou impor as boas emoções, pode ser uma nova forma de opressão, pelo que temos que estar especialmente atentos e atentas aos hábitos de polarização do nosso pensamento e das nossas práticas, quando queremos ajudar as pessoas de uma empresa a aumentarem o seu grau de bem-estar. O abraçar da sombra é também primordial, e é nesse diálogo complexo, respeitoso e sistémico – que enlaça a organização em todas as suas facetas – que as novas linguagens organizacionais devem habitar-se. Felizmente, a genuinidade do interesse das organizações na saúde e bem-estar de quem nelas trabalha também é, cada vez, mais comum, e o escrutínio das práticas e politicas da organização, e da sua coerência com a felicidade provocada, vai emergindo como uma progressiva tendência. O fundamental é assegurar que, ao trazer o positivo para a organização, nunca percamos de vista as incontornáveis complexidades, negatividades e desafios morais ligados ao mundo dos negócios (Lopes, 2019) nem percamos a autenticidade e congruência dos processos.

A paz positiva no contexto corporativo: porque precisamos desta nova narrativa?

A recente introdução do conceito de paz no âmbito corporativo é por isso, aqui, uma adição importante. O impacto das empresas na sociedade é incontornável e a contribuição do mundo corporativo para a paz sustentável começou a ser encarada como um dos seus maiores desígnios em termos de responsabilidade e tributo social – quer internamente à própria organização, quer na aceleração da sua coadjuvação para um mundo mais saudável, harmonioso, diverso e justo. Adicionalmente, pela sua abrangência global, o compromisso corporativo pela paz mostrou beneficiar também as companhias e o seu sucesso (Ralph, 2015).

Este não é, no entanto, um terreno tão fácil nem afável como o da felicidade. Aliás, a associação dos negócios com uma virtude cívica como a paz global materializa, para muitos, uma dimensão paradoxal. Talvez por isso seja mais importante do que nunca.

De que falamos quando falamos de paz? A literatura tem definido dois tipos de paz: a paz negativa e a paz positiva. A paz negativa é a ausência de violência e de medo da violência. Neste particular, as empresas utilizam essencialmente a gestão de conflitos e os processos negociais para transcender e transformar a conflituosidade humana. Mas não chega prevenir conflitos ou tratá-los com dignidade. Durante um conflito, mais ou menos violento, a paz negativa – parar a violência – é provavelmente o objetivo mais imediato.

No entanto, como argumenta Galtung (1969, 1971, 1996), a violência inclui mais do que a violência direta e, consequentemente, uma sociedade ou um sistema humano podem alcançar a paz no sentido negativo, ou seja, sem necessariamente serem pacíficos devido à presença de formas de violência estrutural e cultural. Galtung (1969) afirma que a violência estrutural é agregada a sistemas de desigualdade e manifesta-se em estruturas sociais injustas, não representativas nem inclusivas, que impedem as pessoas de atingir o seu pleno potencial. Este autor argumenta, por isso, que estudiosos e formuladores de políticas devem prestar atenção a ambas as formas de violência e às formas de paz que lhe estão associadas. Precisamos, por isso, de paz positiva.

O termo é usado para se referir à ausência de violência estrutural e à presença de justiça social (Galtung 1969, 1971). Define-se como as atitudes, instituições e estruturas que desenvolvem e mantêm comunidades pacíficas. As mesmas podem emergir das normas, crenças e relacionamentos dentro de um sistema humano, que influenciam a maneira como os cidadãos interagem e cooperam, e criam um código de conduta – formal e informal – que a comunidade segue, e que leva à formação de opiniões sobre moralidade e a ações e comportamento que lhe é apropriado (Galtung, 1969, Niño, 2019).

De acordo com o Institute for Economics and Peace (2019), são oito as condições ou pilares da paz positiva, quando pensadas a nível das nações. Adaptando-as aqui para o contexto organizacional, temos a seguinte proposta de dimensões:

Se nos basearmos nos oito pilares, percebemos como a Paz Positiva descreve um ambiente ideal para que o potencial humano, organizacional e social floresça.

Quando as atitudes tornam a violência menos tolerada (por exemplo, defendendo a equidade, justiça e igualdade na distribuição de recursos e na forma dignificante de tratar e recompensar as suas pessoas; liderando as equipas, em todos os níveis da organização, com um verdadeiro espírito de serviço e reconhecimento; posicionando-se ontologicamente de forma a esperar o melhor de cada trabalhador e, em retorno, dar-lhe o melhor que a organização tem e pode), quando as instituições respondem às necessidades da sociedade e quando as estruturas estabelecem modos não-violentos de resolução de conflitos, o coletivo atinge altos níveis de paz positiva.

Esses altos níveis de paz positiva representam a capacidade de um sistema humano em atender às necessidades dos seus colaboradores e do bem comum.

É assim imperativo que as empresas se certifiquem de que não estão a causar ou exacerbar conflitos (por exemplo, através da promulgação de certas práticas comerciais, de elevados diferenciais entre os salários de chefias de topo e da média das compensações dos seus colaboradores nas bases, de impedimentos à conciliação trabalho-pessoa-família ou de manutenção de desigualdades de género) e que não basta uma abordagem de conformidade com a lei para assegurar uma estratégia sem danos. É vital uma abordagem mais positiva e proativa de construção da paz estrutural, não chegando meramente aumentar a felicidade individual dos trabalhadores.

Ao promover a paz corporativa, as empresas devem reconhecer que o interesse empresarial está entrelaçado com o interesse global. Fomentar processos de paz alinhados com os valores dos direitos humanos, da dignidade, participação, inclusão, proteção e responsabilidade, promovendo a codeterminação, a tolerância, a democracia e a cooperação, também aumenta a natureza social responsável, e a credibilidade, dos esforços corporativos.

Finalmente, é possível acompanhar princípios orientadores de como as empresas podem apoiar a construção da paz estrutural (por exemplo, através das “Orientações sobre Negócios Responsáveis em Áreas de Alto Risco e Afetadas por Conflitos” do Pacto Global da Organização das Nações Unidas/Global Compact (Um Global Compact, 2002) e dos “Princípios para o Investimento Responsável”). Focar o compromisso corporativo em processos de paz implicar atender aos aspetos básicos das melhores práticas e às orientações sobre as muitas maneiras pelas quais as empresas podem contribuir diretamente ou, mais indiretamente, apoiar, a construção da paz, ajudando-as a alinhar-se com as expectativas e necessidades sociais globais em mudança.

Uma nova língua franca com os olhos no futuro

Concluindo, as práticas de promoção da felicidade dos trabalhadores podem ser de grande relevância no local de trabalho, fomentando a sua saúde física e psicológica, bem como as relações sociais harmoniosas, e contribuindo para o negócio. No entanto, isto só é verdade caso as mesmas não sejam meramente instrumentais, e destinadas exclusivamente a obter mais lucros e mais produtividade dos funcionários. Para que não se afastem de formas humanizadoras de gerir pessoas, propomos uma atenção especial a esta nova linguagem da paz positiva, importante, não só, no contexto da campanha das Nações Unidas para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) até 2030, e dedicada ao ODS # 16 – Paz, Justiça e Instituições Eficazes, mas também na conjunção da busca humana por uma uma paz genuína baseada na liberdade, nos direitos humanos, na equidade e na governação justa.

Estamos em crer que as virtudes económicas, que se transformaram nas virtudes hegemonizadoras das nossas vidas coletivas (traduzidas, por exemplo, em irrefutáveis práticas como eficiência, meritocracia, ou incentivos, politicas e práticas que poucos discutem) (Bruni, 2017), não podem, não devem, ser as mesmas que subjazem à ativação da felicidade nas organizações. Propomos para isso que elas confluam com outras virtudes mais abrangentes e sistémicas como a paz, neste que é o tempo para acelerar a consciência coletiva sobre o que é fazer negócio no mundo atual – e quando, como nunca, precisamos afetar uma maior responsabilidade efetiva das empresas na sua contribuição para beneficiar o bem comum.

  • Helena Marujo

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