Barragem Ucrânia

É a política sem regras ou limites, é a guerra de regresso aos extremos do século XX.

É como assistir ao milagre do Mar Vermelho que se abre. Só que estamos na Ucrânia e a visão tem a perspectiva de um anjo em forma de drone estacionado no céu. A corrente espessa mais parece a lava dos elementos de que se faz a guerra. Escorrega pela terra com a violência de um crime cometido em câmara lenta. O que espanta até ao limite do terror é o silêncio que desliza com as águas, como se o ódio fosse um segredo diluído nas águas, como se o senhor das águas fosse o senhor do Mundo e a Ucrânia a planície do Inferno. Esta é a visão da Rússia. Esta é a civilização da Rússia. E a morte da Ucrânia representa a vida da Rússia.

Perante o dantesco das águas soltas pelo Mundo com a destruição da Barragem de Kakhovka, não adiantam considerações legais, avaliações científicas, cálculos geoestratégicos, tácticas militares. É a política sem regras ou limites, é a guerra de regresso aos extremos do século XX onde o extermínio do inimigo significa a erradicação da terra, a aniquilação da cultura, a abolição de uma identidade. Confesso que as imagens da água a fugir da Barragem são uma visão amarga e triste. São a imagem de uma melancolia contínua que se espalha pelo coração da Europa como se um veneno corresse nas nossas veias. Sete salmos pela Europa. Sete palmos pela Ucrânia.

O silêncio pesado e espesso domina as margens do Dnipro, o rio eslavo por excelência. É como se continuamente a lamentação de um Fado Menor se repetisse infinitamente com as ondas de um futuro atormentado. Para os ucranianos a Barragem é a origem do “Mar de Kakhovka”, um Mar interior com 200 km de extensão na diagonal e em que as margens invisíveis pela distância são dois continentes do Mundo Eslavo. A Rússia muda a geografia ao sabor das conveniências da guerra e dos caprichos da política.

Imaginem a destruição de um Mar interior, imaginem as escorrências da matéria líquida pelas planícies secas, imaginem a morte silenciosa que invade as cidades, imaginem a solução do silêncio pelas águas invasoras, imaginem a película dos Anéis de Saturo depositadas na alma de uma nação. A ideia parece ter sido transformar a Ucrânia num cemitério líquido. A intenção parece ter sido transformar a Ucrânia na Atlântida da Europa, para sempre afundada, para sempre perdida. Há consequências metafísicas e históricas inesperadas na demência da guerra. Na Rússia o Novo Mundo é um Livro Antigo.

Na viscosidade aérea da rua abstracta a água instala-se. Percorre as avenidas com a impunidade do invasor, reclama o território que não lhe pertence, reclama vidas em vagas hipnóticas, transforma as areias finas de uma ampulheta no cascalho escuro de um campo de concentração. Sons de pessoas que desejam ser peixes, discursos de cães sem asas encharcados pelo medo, vozes de gatos terrestres afogadas pela filosofia das águas. A Casa da Cultura de Nova Kakhovka cercada pela mancha turva, castanha, suja, de um esgoto liberto à luz do Sol. No centro da Praça uma estátua sobrevive na impunidade soviética de um pedestal eterno chamado Rússia.

O sonho da Ucrânia é o pesadelo da Rússia. O sonho da Rússia é o pesadelo da Ucrânia. Muitas vezes a matéria dos sonhos é a mesma matéria dos pesadelos. Nas cidades subaquáticas de uma Europa pós-soviética com vista para as ruínas do Muro de Berlim, alguém tenta salvar os livros de uma biblioteca do extermínio das águas. E no meu espírito surge a beleza das imagens dos carimbos dos passaportes, a lombada das encadernações a ouro e púrpura, o cheiro indestrutível das estantes dos livros encostadas à vala-comum mais próxima. Na observação das águas, o viajante percebe que o navio antigo já não repousa no porto e que a Ucrânia tenta sobreviver a uma nova vida.

O que nos diz a destruição da Barragem de Kakhovka sobre a Rússia? Que a Rússia é uma entidade política auto-centrada, friamente dramática, cruelmente implacável, marcada por uma mentalidade de cerco, marcada pela percepção da injustiça e pela chancela da incompreensão do Mundo. Sublima a Rússia politicamente este carácter com um infinito sentimento de superioridade, com a recusa de todas as regras exteriores e com a criação dos seus próprios standards que considera superiores e universais. Esta é a Rússia agressiva, arrogante, imperial.

Mas depois há a Rússia que deseja ser o exemplo do Mundo, seguida, admirada, reconhecida, respeitada, amada pela comunidade das nações, projectando assim um desejo de reconhecimento que reforça exteriormente uma profunda insegurança sobre o seu lugar no concerto das nações. Sublima a Rússia politicamente este carácter com um infinito sentimento de inferioridade, à deriva pelo relativismo das regras e dos standards. Esta é a Rússia passiva, indecisa, regional.

O enigma da Rússia está contido na instabilidade destas duas faces do seu carácter histórico e político. Entre o Imperial e o Regional, a Rússia é uma guerra entre dois mundos.

A Ucrânia vê transbordar a sua identidade num rio sem fim. A terra do Holocausto das Balas reclama hoje pelo Regular Funcionamento das Margens.

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