Belém em Kiev

O excesso marca a deslocação de Marcelo à Ucrânia e em política o sentido das proporções é o mais difícil de todos os exercícios.

E assim um “Presidente energético” toma a Ucrânia numa operação Blitz. O entusiasmo do Presidente excede todas as expectativas. Não parece um Presidente em visita oficial a um país em guerra. Pelo contrário, há uma atmosfera demasiado descontraída mais apropriada ao espírito de uma visita de turismo. Mesmo em turismo político é excessivo. O excesso marca a deslocação de Marcelo à Ucrânia e em política o sentido das proporções é o mais difícil de todos os exercícios.

A visita às trincheiras em fato e gravata com sapatos a condizer é uma imagem deslocada, surreal, a imagem de um filme em que a personagem se engana no cenário e no filme. Depois há o discurso em ucraniano dito de uma forma eufórica, exibicionista, um gesto que vai para além da simpatia protocolar até ao limite da vaidade pessoal. Para não falar do passeio descontraído pela Avenida Khreshchatyk por entre os restos enferrujados dos tanques russos destruídos nos dias em guerra.

Na imaginação do Presidente a guerra parece uma realidade distante, umas fotografias no jornal, umas imagens violentas nas redes sociais, notícias constantes nas televisões, um complexo de efeitos que transforma a guerra numa coisa asséptica, real e irreal, dramática e estética, gloriosa na memória dos que não morrem. A cerveja na esplanada, o cortejo de selfies, faltou apenas a loja dos souvenires, e tudo faz lembrar o turista acidental que nos portões de Auschwitz tira uma foto a rir para celebrar o fim do Mundo.

Kiev fica a quatro mil quilómetros, mas a “fronteira da Ucrânia” é também parte da “fronteira portuguesa”. Uma declaração política que afirma uma visão extensiva e alargada de uma ideia da Europa. Ao mesmo tempo que o Presidente fazia estas afirmações, o avião de Prigozhin era pulverizado nos céus da Rússia com uma assinatura invisível mas politicamente reconhecida. Esta é a realidade nesta parte do Mundo, onde a política tem o preço da vida e da morte no espaço de uma opinião, nas palavras de um gesto de lealdade ou de traição. É o regresso da “política do terror” à Europa. Onde estão as pessoas decentes da Rússia?

O Presidente vem de um Mundo que não conhece a realidade da política em que a moeda em circulação é sempre uma ameaça existencial. Ser independente é um perigo. Ser dependente é um perigo. Ser livre é uma ameaça. Ser ocupado uma condenação. Nos dias em que esta fronteira entre duas Europas politicamente exclusivas evoca outros dias e outros Muros, o Presidente de Portugal passeia-se entre os campos da morte de tantas guerras passadas e de uma guerra presente com a leveza de um Portugal inocente e protegido de todos os dramas da Europa. Nesta outra parte da Europa a “esperança” cumpre pena numa colónia penal de alta segurança.

Há no entanto uma declaração política que não deixa de causar alguma perplexidade. O Presidente afirma que “não há jogo duplo” de Portugal quanto à adesão da Ucrânia à União Europeia. A declaração é sublinhada com a garantia de que esta é a posição portuguesa conforme o entendimento do Presidente de Portugal e que “acima do Presidente não há mais ninguém”. Aliás o Presidente apoia a adesão da Ucrânia não apenas à União Europeia como à NATO. Obviamente que parece existir um destinatário nacional para estas palavras. E o destinatário é o Primeiro-Ministro de Portugal.

Não deixa de ser estranho neste contexto internacional a introdução de uma referência à política nacional. Numa interpretação cínica, talvez o Presidente inspirado pelas ruínas de Bucha, ainda em ritmo acelerado pelo veto político ao Pacote da Habitação, tenha julgado apropriado reafirmar no exterior o seu poder e o seu lugar na hierarquia institucional da nação. Se esta é a intenção política sobra em arrogância implícita o que falta em frontalidade explícita. E é mais um factor a adicionar ao clima de vigilância política que rege as relações institucionais entre Belém e São Bento.

Mas a questão tem de ser colocada no contexto da política nacional. Existe um “jogo duplo” de Portugal em relação à Ucrânia? E um “jogo duplo” alimentado por quem no silêncio das reuniões à porta fechada? Mas mais ainda. Portugal tem duas posições diplomáticas distintas? Voltámos ao tempo das “diplomacias paralelas”, uma dirigida de São Bento outra orientada por Belém? O Ministro dos Negócios Estrangeiros acompanhou o Presidente da República em toda a viagem. Terá sido como executor político do “jogo duplo” ou representante da “diplomacia de São Bento” ou suporte da “diplomacia de Belém”? A política em Portugal está repleta de omissões e de zonas cinzentas.

Para o Presidente que esteve na Ucrânia a política acaba por representar a síntese de uma particular e pessoal visão do Mundo. Um “submundo tornado sobremundo”, uma espécie de Paraíso na Terra. Na visão Presidencial, a política significa o termo realista e fantasista de tudo o que existe nas relações humanas de poder. Na Ucrânia, o Presidente é confrontado com os demónios opressivos das purgas e dos extermínios, de todos as manipulações desumanas de uma “política selvagem”. A degradação, a condição da vítima e do carrasco, partilham a mesma sala num abrigo subterrâneo. Na Ucrânia o Presidente esteve fora do seu Mundo.

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