Bruxelas anda a gozar connosco

Da próxima vez que um representante da União defender gigantes digitais europeus ou a privacidade dos cidadãos, podemos estar seguros que não passa de uma piada. E somos nós que estamos a ser gozados.

Na mesma semana em que a União Europeia finalmente anunciou com pompa e circunstância o novo pacote legal para o mercado digital, Bruxelas fez questão de enterrar qualquer aspiração de vir a ter um papel mais dominante na proteção dos cidadãos. Nem 48 horas tinham passado da triunfante conferência de imprensa que anunciou o Digital Services Act, quando foi anunciado que a Google tinha autorização europeia para adquirir a Fitbit – uma empresa que produz fitness trackers e outros wearables.

O que estão em questão, obviamente, não é o produto físico. A Google tem capacidade para criar e colocar no mercado os produtos que quiser. O que está em causa são os dados: a aquisição da Fitbit dá à Google dados íntimos de 30 milhões de pessoas. São informações relacionadas com os padrões de sono, dados cardíacos, sedentarismo, etc. E é essencial notar que isto está longe de afetar apenas os utilizadores da Fitbit. O que vai acontecer é que a Google vai criar algoritmos com base nos dados desses trinta milhões para extrapolar dados comportamentais para cada um dos cidadãos, identificando perfis semelhantes para melhor vender publicidade dirigida ou outros produtos, como seguros de saúde.

O grande argumento que permitiu à Google convencer a União Europeia foi a promessa americana de não usar os dados recolhidos para publicidade dirigida num período de dez anos. Em 2007, quando a Google comprou a DoubleClick, também prometeu que nunca iria comprometer a privacidade dos seus utilizadores, promessa que cumpriu até que em 2016 decidiu fundir uns e outros para melhor desenvolver a sua publicidade dirigida.

O padrão é sempre o mesmo: estas grandes empresas assumem que a situação mudou, prometem novas proteções de privacidade que não existem e pagam uma multa simbólica que nem lhes belisca o sono. Em consequência, os cidadãos europeus ficam mais vulneráveis aos abusos da máquina algorítmica que tritura a privacidade e os direitos individuais. E o outro argumento hilariante da Google é que esta aquisição vai aumentar a inovação, ajudando a empresa “a construir produtos que ajudem as pessoas a levar vidas mais saudáveis”, sem prejudicar a “concorrência vibrante” deste mercado. Perguntem a um qualquer investidor se hoje estaria disposto a colocar dinheiro num wearable europeu e terão a resposta para a magnífica concorrência vibrante que esta decisão garantiu.

Dezenas de associações de defesa do consumidor e antigos responsáveis europeus das pastas da competitividade digital suplicaram que o negócio não fosse para a frente. Mas nada disto impediu a comissária da Concorrência, Margrethe Vestager, de escrever que “podemos aprovar a proposta de aquisição da Fitbit pela Google porque os compromissos assegurarão que o mercado de wearables e o espaço de saúde digital nascente se manterão abertos e competitivos.” Nada mais falso, como os serviços da União bem sabem. Isto vais muito para lá de questões relacionadas com a privacidade, é também a credibilidade das políticas digitais europeias que ficam postas em causa.

De que serve lançar um pacote legislativo que dá poderes reforçados para controlar os abusos dos gigantes digitais se não há a mais remota vontade de os utilizar? E de que serve andar a promover o aparecimento de novas empresas capazes de rivalizar com os gigantes americanos e chineses quando se continua a abrir mais mercado e a prejudicar os utilizadores e empreendedores pelo caminho? Não é possível à União defender o aparecimento de gigantes industriais na década digital se continua a entregar mercados inteiros às empresas não-europeias.

Esta triste decisão confirma que Bruxelas não está remotamente interessada em proteger os cidadãos – ou que pelo menos não tem a visão necessária para entender o que está em causa nestes negócios. É assustador, porque com este padrão, é claro que não será a União Europeia a proteger os cidadãos. E, dada a fraqueza estrutural das sociedades civis europeias, ficamos literalmente entregues aos algoritmos de mão americana e chinesa.

Ler mais: O documento emitido por associações de defesa do consumidor e de direitos digitais contra este negócio é demolidor da decisão europeia. A sua leitura só reforça a incompreensão da luz verde dada a este negócio.

 

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