
Cem dólares a um cêntimo
A Nova América de Trump tem uma contradição insanável e insuperável que deve ser enunciada – Como conciliar a América do século XIX com a América do século XXI?
Bombas lançadas pelo mundo a partir do Jardim das Rosas. No cenário da Casa Branca, o Presidente Trump surge como o novo controlador do mundo para anunciar os termos iniciais da nova ordem internacional. Há algo de cínico, falso, cruel, arrogante, na pose e na encenação de Trump. O cenário das bandeiras no intervalo das colunas, a pedra dos dez mandamentos retirada de uma produção de Hollywood. É a vitória do kitch. As tarifas voam pelos céus da política como o fim de uma época e o regresso ao futuro. As tarifas são o carpet bombing em números arbitrários explicados com a excitação de um adolescente cidadão sénior.
A América resolve mudar e o mundo tem que mudar com a América. Uma leitura política encontra nos escombros da economia a ganância essencial que liquida a confiança agora substituída pela mais pura vontade de poder. A América que criou a globalização tem o direito de destruir a globalização. A América que se apresenta como a nação indispensável tem o direito de se declarar como a nação transformada num novo estado mundial. E a América como soberano absoluto resolve tornar o mundo dispensável ou submetido à vontade de poder. Temos a América e as colónias. Temos a América e a distopia da nação global.
Politicamente, o gesto das tarifas merece alguma atenção, pelo que oculta e pelo que revela. As tarifas representam um fétiche político que promove a paragem do tempo, o congelamento dos problemas, a vital protecção para reverter a decadência com ordens executivas – declarações que projectam uma ignorância política imprópria para mentes sensíveis. A América é governada por uma lúmpen elite que nada sabe sobre política, mas que domina todo o alfabeto dos negócios na versão mais próxima do código de honra da mafia. A responsabilidade na manutenção da ordem global, a complexidade da diplomacia, as questões da paz e da guerra, tudo é concentrado na imagem do homem de negócios que se desloca ao Bronx, na companhia de quatro seguranças e uma pistola glock amparada nos cartões de crédito, para cobrar as rendas aos inclinos relapsos. É a política que se observa na NATO, onde os aliados são vistos como inquilinos do arrendamento americano e ameaçados pelo despejo da segurança e pelos despojos da guerra. E o que dizer do secretário da Defesa que usa fatos onde a bandeira da América é transformada em forro de casaco ou em acessório de bolso? MAGA, MEGA, MINI, MICRO, América. Washington pode sempre impor tarifas à entrada de bens na Avenida Pensilvânia e a Europa pode sugerir tarifas à entrada de consumíveis nas embaixadas dos países membros.
As tarifas são a face política invisível de um movimento para refundar a América nas bases de uma visão neo-reaccionária, anti-democrática, anti-igualitária, proteccionista, libertária, mais o restabelecimento da ordem natural das coisas de acordo com o movimento evangélico-sionista. A reunião de todas estas características pode oscilar entre o absurdo e o cómico, mas é o absurdo e o cómico que governa a América.
A fonte do pensamento de Trump é a convicção de que a democracia é incompatível com a liberdade. Para o Presidente, o governo federal deve ser encarado como uma grande corporação empresarial em que os cidadãos são considerados clientes. Como tal, o interesse do cliente deve estar alinhado com as ambições da corporação. O interesse e a ambição podem ser conciliados pelos manuais da ciência política através da reinvenção revolucionária do fordismo – “O cliente pode escolher a cor do carro desde que seja preta!”. O CEO, vulgo Presidente, terá assim como propósito político essencial a reconstrução da grande América industrial como oficina do mundo e motor do progresso. Reconstruir a rust belt ao som dos hinos da bible belt. Trump vê nos impostos o preço que cada cliente tem de pagar à grande corporação empresarial pela satisfação dos desejos – um novo iphone, um novo SUV, a América transformada num grande centro comercial onde são transaccionados bens. É o Governo transformado em serviço de apoio aos clientes. A liberdade é assim resumida à soberania industrial e ao direito a comprar americano. A ideia da América retratada no tecno-feudalismo.
O movimento para refundar a América recorre igualmente a um procedimento designado por “aceleracionismo”. Este dispositivo político explica a exponenciação de declarações, posições, ideias, gestos, em todas as direcções, todas verdadeiras, nenhuma contraditória. O “aceleracionismo” utiliza o capitalismo e a tecnologia para perturbar o sistema democrático vigente no sentido de garantir uma mudança radical. É a América pós-industrial e pós-democrática na perspectiva política visionária de Trump. É a América como produtora autocrática da liberdade.
A Nova América de Trump tem uma contradição insanável e insuperável que deve ser enunciada – Como conciliar a América do século XIX com a América do século XXI? Trump acredita em simultâneo no regresso ao passado e no regresso ao futuro. O mundo é apenas o sub-produto excedentário da Nova América.
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