Depois nada de compunções e queixumes!
Tenhamos consciência de que o uso de práticas autoritárias digitais, espiando tudo e todos como alicerce da investigação criminal é indiciador da sabotagem à autonomia e dignidade das pessoas.
Desde 2008 que a investigação criminal se apoia em metadados, espiando, coletando e interpretando o rasto que as pessoas forçosamente deixam nas suas interações e comunicações diárias no mundo digital.
A lei n.º 32/2008, cuja origem radica numa diretiva europeia de 2006, foi criada com o fim de implementar medidas de combate ao terrorismo, e, nessa sequência, legislou-se sobre a conservação e a transmissão de dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas coletivas, bem como de dados conexos necessários para identificar os assinantes ou os utilizadores registados, para efeitos de investigação, deteção e repressão de crimes graves eventualmente por eles cometidos. Em 19 de abril de 2022 o Tribunal Constitucional decidiu por acórdão de inconstitucionalidade da norma que «autoriza a transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal».
A decisão do referido Tribunal Constitucional, que reveste força obrigatória geral, teve um impacto muito relevante na investigação da criminalidade, e trouxe sequelas judiciais aos processos com recurso a metadados na investigação criminal desde 2008.
Contudo, em relação a este último aspeto, quanto às decisões transitadas em julgado, veio agora o Supremo Tribunal de Justiça, através de acórdão proferido no passado dia 6 de setembro, pronunciar-se sobre a revisão de sentenças com o intuito de modificar a decisão em sentido mais favorável aos arguidos, dizendo que ela não é automática, e que, em relação aos casos julgados anteriormente, essa revisão teria de estar expressamente prevista na declaração de inconstitucionalidade da norma.
Curiosamente, aquando daquela decisão do Tribunal Constitucional, já o nosso chefe do governo se havia mostrado despreocupado com o tema, ou seja com a inconstitucionalidade da lei, defendendo publicamente uma interpretação jurídica sobre as consequências de uma decisão judicial, ao mesmo tempo que garantia que a declaração de inconstitucionalidade em relação à chamada lei dos metadados não atingiria os processos judiciais que já teriam transitado em julgado, com a alegação de que o Tribunal Constitucional não acrescentara qualquer ressalva no acórdão.
Independentemente da posição assumida pelo governo no sentido em que deve ser interpretada a decisão do Tribunal Constitucional, os tribunais, respaldados na sua independência, terão de decidir com base na lei.
Assim, se esta decisão do Supremo Tribunal de Justiça não nos traz nada de novo relativamente à interpretação dada em relação aos casos julgados, a mesma decisão poderá ser posta em causa e, naturalmente, dela resultar um novo recurso para o Tribunal Constitucional ou mesmo para as instâncias europeias, após esgotadas todas as vias internas de recurso.
Outras normas constitucionais põem em causa a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, já que se arriscam a colidir com os princípios nelas consagrados, como, por exemplo, o princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, e, sobretudo, com o princípio da aplicação da lei mais favorável, consagrado no n.º 4 do artigo 29.º da Constituição.
Apesar de não estar previsto no acórdão do Tribunal Constitucional a ressalva aos casos julgados, poderá em cada processo, o arguido, visado pela utilização de metadados dar entrada com recurso extraordinário, a fim de ver alterada a decisão condenatória, caso a decisão do Tribunal do recurso não lhe seja favorável, e, com base na violação das disposições constitucionais, recorrer para o Tribunal Constitucional.
Na fiscalização sucessiva e concreta da constitucionalidade, intervenção do Tribunal Constitucional dá-se na sequência de um recurso da decisão do tribunal de aplicar uma norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, tal como estipula o n.º 5 do artigo 280.º da Lei Fundamental. Quando tal se verifica têm legitimidade para recorrer destas decisões as partes envolvidas no processo em causa, nomeadamente os arguidos.
Porém, em situações dessas, o Tribunal Constitucional só poderá pronunciar-se em relação a um processo em concreto, uma vez que a fiscalização abstrata da constitucionalidade e da legalidade só poderá ser apreciada a requerimento, por exemplo do Presidente da República ou do Provedor de Justiça ou até, porque não, do próprio Procurador-Geral da República.
A norma constitucional, ao excluir os casos julgados, restringe igualmente o acesso à reparação, bom nome e reputação, entrando assim em contradição com outra norma constitucional vertida no artigo 33.º (Direito à identidade, ao bom nome e à intimidade), donde resulta que negar direitos a condenados o mesmo é negar a dignidade humana, o respeito pelas pessoas e pelos seus direitos, os quais são pertença de todos desde o nascimento.
A solução jurídica do Tribunal de Justiça está longe de ser convincente, e apenas se resolve quando o Tribunal de Justiça da União Europeia se pronuncia sobre o alcance desta questão prejudicial (se a ressalva constitucional para os processos transitados em julgado, viola ou não o Direito da União Europeia) por forma a existir um entendimento abstrato aplicável na generalidade.
Convém que tenhamos consciência de que o uso de práticas autoritárias digitais, espiando tudo e todos como alicerce da investigação criminal é indiciador da sabotagem à autonomia e dignidade das pessoas. A sua aceitação acrítica e passiva conduzir-nos-á fatalmente, à limitação da liberdade de expressão. Depois nada de compunções e queixumes!
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