Direito dos consumidores a reembolsos por parte das transportadoras aéreas em tempos de pandemia

  • Maria Barros Silva
  • 6 Julho 2020

O objetivo da legislação europeia de permitir uma abordagem coordenada a nível da União acaba por ser desta forma posto em causa, quando cada Estado Membro.

Desde que a pandemia de Covid-19 assolou o mundo, e em particular a União Europeia, que as transportadoras aéreas se veem a braços com uma crise sem precedentes, com milhões de consumidores com viagens marcadas a aguardar com apreensão o reembolso do seu dinheiro.

De um ponto de vista estritamente legislativo, a questão pareceria, em contexto normal, bastante clara.

O Regulamento (CE) n.° 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro, estabelece, em caso de cancelamento do voo pela companhia aérea, o direito dos consumidores ao reembolso total pelos seus bilhetes, no prazo de 7 dias, ou ao reencaminhamento para outro voo, se possível. Excluindo-se, todavia, em circunstâncias extraordinárias (como a presente, em que inclusivamente se verificou o encerramento de fronteiras), bem como em cancelamentos com mais de 14 dias de antecedência de aviso, o direito a uma indemnização.

Assim, o reembolso por meio de um vale de viagem apenas seria possível mediante acordo escrito do passageiro.

Situação diferente, não prevista no Regulamento, é aquela em que os passageiros queiram cancelar uma viagem por sua própria iniciativa. Isto aconteceu sobretudo no início, em que as fronteiras ainda não estavam encerradas, mas já havia fundados receios de contágio, e é algo que se prevê que aconteça também nos próximos meses, em que ainda que se retomem os voos, é expectável que muitos consumidores adotem uma postura cautelosa e prefiram adiar as suas viagens. O reembolso ou não nestes casos depende do tipo de bilhete adquirido, tal como especificado nos termos e condições da transportadora, ainda que a maioria das transportadoras, nesta situação de pandemia, tenha optado por flexibilizar o regime de alteração de datas ou oferecer vales para utilização futura.

Todavia, o contexto atual está muito longe da normalidade e a legislação europeia certamente não foi pensada para uma situação excecional de pandemia global, até há bem pouco tempo inconcebível.

A viabilidade financeira das transportadoras aéreas, que têm custos fixos extremamente elevados, está seriamente em risco, não obstante o Parlamento Europeu ter suspendido os requisitos de que as companhias aéreas efetuem a maioria dos seus serviços regulares, para não perder as suas faixas horárias de aterragem; e a Comissão Europeia ter flexibilizado as regras de auxílios de Estado, permitindo um maior apoio dos governos dos Estados Membros.

Estados Membros que, na sua maioria (incluindo Portugal), solicitaram já à Comissão Europeia a não aplicação temporária do Regulamento, com o objetivo de permitir às companhias aéreas, de forma generalizada e harmonizada, a emissão de vales das viagens canceladas, em vez de reembolsos que contribuem para o seu descalabro financeiro, com impacto na competitividade da aviação europeia a longo prazo.

Não obstante, a Comissão Europeia permanece, até agora, impassível na não alteração da lei, alegando que a proteção dos consumidores é intocável e que o foco das companhias áreas deve ser tornar os vales mais atrativos, por forma a mais consumidores optarem por essa via de forma voluntária.

Esta posição da Comissão de manter os ideais de proteção dos consumidores, ainda que, aparentemente, beneficie os interesses dos mesmos, é manifestamente insuficiente e alheada da realidade, sendo até, na prática, nefasta para aqueles que tenta proteger.

O objetivo da legislação europeia de permitir uma abordagem coordenada a nível da União acaba por ser desta forma posto em causa, quando cada Estado Membro, independentemente do disposto no Regulamento, tem uma abordagem de aplicação prática distinta e até contra legem.

De facto, se os próprios Estados Membros não apoiam a aplicação do Regulamento, e sendo estes, em primeira linha, os responsáveis pelo cumprimento da legislação europeia, nomeadamente através das respetivas autoridades nacionais de aviação, o que resulta é que estes acabam por fechar os olhos ou, nalguns casos, até mesmo permitir às companhias aéreas que emitam livremente vales em vez de reembolsos, restando aos consumidores a possibilidade de recorrer ao sistema judicial nacional, com possível recurso para os Tribunais Europeus.

Consumidores esses que, muitos dos quais com pressão financeira acrescida em consequência do Covid-19, não deveriam ser obrigados pelos Estados a sustentar as companhias aéreas. De facto, o seu direito ao reembolso das viagens canceladas é agora de extrema importância, com a crise financeira que resulta das medidas de confinamento a agudizar a fragilidade económica das famílias.

Uma possível solução, que não requer alteração legislativa, poderá ser tornar os vales consideravelmente mais atrativos, permitindo aos consumidores com maior disponibilidade financeira optar por este mecanismo de forma voluntária, e permitindo aos outros o direito a um reembolso efetivo em prazo razoável (certamente superior aos 7 dias referidos no Regulamento, impossíveis de cumprir dada a quantidade de pedidos de reembolso).

Algumas medidas a implementar no sentido de incentivar a escolha dos vales de viagem poderiam ser, por exemplo: atribuir vales com um valor um pouco superior ao preço pago pelo bilhete; aumentar a janela temporal em que estes podem ser utilizados (em tempos de tamanha incerteza, 1 ano é manifestamente insuficiente); permitir a sua transferência para outros passageiros; tornar claro o direito de reembolso imediato no final da validade, em caso de não utilização dos vales; e por fim, considerar associá-los a regalias, tal como, oferta de noite em hotel, refeição, visita turística, acesso a lounge de aeroporto, desconto em viagens futuras etc.

Em paralelo, e para que os consumidores tenham a necessária confiança para optar pelos vales, em particular havendo fundados receios de falência de companhias aéreas, seria importante obter alguma forma de fundo de garantia dos governos ou até, a nível da União Europeia.

Esta poderá ser uma medida adequada a proteger tanto os consumidores, como as companhias aéreas, e, em última análise, os próprios Estados Membros, permitindo a recuperação do mercado da aviação europeia a longo prazo, com base na confiança mútua e respeito pela legislação europeia.

Todavia, por forma a permitir uma aplicação uniforme e não discriminatória destas medidas, e tal como já alertado por vários Estados Membros, é essencial algum tipo de orientação a nível da Comissão, por exemplo através da emissão de recomendações. Aguardemos.

  • Maria Barros Silva
  • Advogada associada no departamento de concorrência e União Europeia da SRS Advogados

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