Energia a preço de custo

  • João Crispim
  • 2 Junho 2021

Há já alguns anos que é possível participar ativamente na transição energética através do autoconsumo.

Os preços de mercado de energia estão elevados. A média dos últimos meses surpreende: por um lado, por dificilmente se encontrar paralelo; por outro lado, atendendo aos recursos renováveis atuais, tipicamente motivadores de preços mais baixos devido ao seu custo marginal próximo de zero. O acumular de tempo neste registo de preços de mercado dita que algo terá de mudar: o preço pago pelos consumidores.

Recordando os básicos: o preço pago pelos consumidores na sua fatura mensal de energia elétrica é composto pelo preço de mercado grossista da energia, ao que se somam as tarifas de acesso às redes (TAR) e impostos. Embora se possa pensar que a componente de energia seria a maior fatia, acontece que, à semelhança do que os agricultores, pescadores e outros bem compreendem, nem sempre o preço pago ao produtor é a maior fatia dos custos para o consumidor. Aos agricultores e aos pescadores, são os intermediários e retalhistas que levam tantas vezes a maior fatia. No caso da energia, são as redes e o Estado. A repartição atual é cerca de 30% (energia) para 70% (resto).

Esta breve explicação é relevante para contextualizar a afirmação seguinte: O aumento dos preços de mercado de energia leva a aumentos de preços aos consumidores, mas não em percentagem equivalente. Se a energia aumentar 40%, a fatura ao consumidor não aumenta 40%, mas 12%. Tal acontece com atraso temporal, já que a maior parte dos consumidores não tem tarifários indexados ao mercado, mas estaremos na iminência de um ajuste, já que há comercializadores a perder dinheiro com cada kWh vendido.

Poderá pensar-se que há pouco que o consumidor possa fazer, mas os últimos anos têm demonstrado que a informação e a digitalização conspiram para dar poder a quem não o tinha. A passividade pode e deve dar lugar à participação. Munidos das ferramentas certas, é possível diminuir custos e risco, ao mesmo tempo que diminuímos custo para outros consumidores e para o sistema, além de diminuirmos o impacte da energia consumida, nomeadamente sobre o ambiente.

Há já alguns anos que é possível participar ativamente na transição energética através do autoconsumo. Com preços de equipamentos a descer e custos de energia elétrica a subir, o caso económico para a compra de alguns (poucos) painéis fotovoltaicos sai favorecido. Naturalmente dependendo das horas em que utilizamos energia, a potência ideal a instalar pode ser maior ou menor, já que os excedentes não têm o mesmo valor económico que a energia utilizada pelo próprio: a energia gerada e utilizada localmente (“autoconsumo”) substitui aquisições via rede, tipicamente quatro ou cinco vezes mais cara. Já os excedentes (diferença entre a energia produzida e utilizada), se existirem, poderemos vender a agentes de mercado, tipicamente por um preço inferior à energia transacionada em mercado grossista. Estas eram as alternativas até surgir o conceito de Comunidades de Energia. A promessa, nas próprias palavras que constituem o conceito, deixam antever uma organização dinâmica, auto-organizada, procurando maximizar o valor (monetário ou não) para os seus constituintes.

Na sua génese (Artº 22º da Directiva (UE) 2018/2001) está previsto o acesso das Comunidades de Energia a “Produzir, consumir, armazenar e vender energia renovável” bem como “Partilhar, no seu seio, a energia renovável produzida pelas unidades de produção que são propriedade dessa comunidade de energia renovável”. A tradução para legislação e regulamentação portuguesa ocorreu primeiramente com o DL 162/2019 e posteriormente com o Regulamento 266/2020, revisto pelo 373/2021. Infelizmente, a abordagem portuguesa foi conservadora e restritiva quanto à forma de organização das Comunidades. Onde se pretendia inovação e participação comunitária, obtivemos organização centralizada e monolítica. Podemos encontrar um exemplo de perda de eficiência do conceito pela rigidez com que estas comunidades se deparam num elemento fundamental: a partilha de energia.

Como referido acima, existe uma diferença significativa entre o valor tipicamente atribuído ao excedente e o valor de compra a um comercializador. Esta é a zona de acordo potencial (ZOPA, no acrónimo mais conhecido, em inglês) entre participantes na comunidade. Exemplificando: Se o participante A tem atribuídos 5kWh entre as 14h e as 18h e não vai estar em casa, poderia vender esta energia ao participante B (fã do teletrabalho) por um preço abaixo do que este pagaria ao seu comercializador (certamente a Coopérnico…).

Infelizmente, tal não é possível no enquadramento atual. Mesmo no mais recente regulamento, a possibilidade de coeficientes de alocação variados ao longo do ano não faz deles variáveis. Alocações dinâmicas ficaram de fora pela aparente necessidade de definições a priori. Limita-se a inovação e a capacidade de organização intra-comunidade.

Ao contrário do que aconteceu (e bem) no caso de tecnologias com externalidades positivas (energia eólica, fotovoltaica, veículos eléctricos, entre outras), não só não se favorece a adopção das Comunidades, como efectivamente se limita o seu alcance, penalizando o caso económico. Recorde-se que a melhoria do caso económico não se limita a criar valor para o investidor. Ao favorecer maior investimento em energia renovável próxima do ponto de utilização criam-se benefícios à sociedade de múltiplas outras formas: menos CO2 emitido, diferimento de investimentos na rede, redução da procura em mercado e consequente diminuição dos preços grossistas, aumento de participação dos cidadãos na transição energética e dinamização da participação cívica e social.

Parece bom de mais para ser verdade, mas não é.

  • João Crispim
  • Vogal da Direção e Diretor da Produção da Coopérnico

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Energia a preço de custo

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião