Estado de Direito e advocacia ainda a tempo de outro “final”

  • José Costa Pinto
  • 14 Junho 2023

Todos estamos de acordo que as regras que limitam o acesso à advocacia não podem constituir obstáculos injustificados ou desproporcionados.

Tal como nos filmes de fraca qualidade, há “finais” que se percebem logo no início das tramas. Não era preciso ser vidente, muito menos um génio, para perceber que o “filme” do ataque ao Estado de Direito, à advocacia e à cidadania que temos assistido ao longo dos últimos anos teria um “fim” como aquele que agora se apresenta.

Na verdade, a visão burocrata de quem preenche os lugares cimeiros da União Europeia e dos gabinetes ministeriais e reguladores locais já há muito tinha cravado no nosso espaço público a ideia de que as “profissões reguladas”, em particular a advocacia, se limitavam a ser uma espécie de campo fértil do corporativismo e um “parente pobre” do desenvolvimento económico.

A ideia que querem vender é, entre outras, a de que não há diferença nenhuma que determinados assuntos de natureza jurídica sejam tratados por um advogado ou, por exemplo, por um médico. Uma situação destas é tão absurda como permitir que um advogado substitua o médico no atendimento a doentes e/ou a prescrever medicamentos nos casos em que é “apenas” uma dor de cabeça ou de garanta.

Isto não faz sentido nenhum, todos percebemos isto. Então, mas se é assim, como é, o que pode justificar a introdução de disparates destes?

Num Estado de Direito Democrático cabe aos titulares dos cargos políticos explicarem as opções políticas que tomam. Não serve refugiarem-se em justificações do “direito europeu”, muito menos em estudos ou pareceres de entidades administrativas.

É preciso dizer de forma muito clara que sem “atos próprios” e sem regras autónomas e independentes de exercício e regulação da profissão não há advocacia. E é preciso dizer, também, que sem advocacia não há Estado de Direito, que sem Estado de Direito não há direitos, liberdades e garantias e, sem estes, não há cidadania.

Todos estamos de acordo que as regras que limitam o acesso à advocacia não podem constituir obstáculos injustificados ou desproporcionados e, talvez, não fosse mau começar por reconhecer que a Ordem dos Advogados nem sempre pautou a sua atuação de forma correta nesta matéria.

A verdade é que tivemos dirigentes, com forte apoio na Classe, que usaram a prerrogativa de autorregulação para (assumida e publicamente) acalçarem fins que não são os que fundamentam a sua atribuição.

A verdade, também, é que como Classe não estivemos bem aí e demos espaço a uma perceção pública (bem aproveitada agora pelos promotores destas iniciativas legislativas, diga-se) de que o que queríamos mesmo com estes poderes era protegermo-nos, impedirmos o acesso de mais candidatos à profissão e “salvar” o espaço dos que já estavam. Tudo na vida tem um preço, este é o que estamos na iminência de pagar.

Seriam seguramente passos importantes para os nossos políticos e concidadãos perceberem que esta luta é uma luta pelo Estado de Direito, pela advocacia e pela cidadania e não uma mera luta corporativista, se começássemos por reconhecer os excessos do passado em várias matérias relevantes em sede de exercício do nosso poder de autorregulação.

Neste capítulo, penso em matérias como o acesso à profissão e os estágios (seja no que respeita à aceitação de estágios não remunerados, seja no que respeita ao afastamento injustificado dos advogados-estagiários do sistema de acesso ao direito); penso em matérias como as condições criadas aos jovens advogados nos primeiros anos de exercício profissional (propositadamente oneradas para os afastar e desencorajar a prosseguir); e penso igualmente em matérias como as permanentes “guerrilhas” internas e ataques entre as diferentes formas de exercício da profissão (que surpreendentemente, mesmo numa hora destas, teimam em não desaparecer dos discursos oficiais dos mais altos representantes).

Reconhecer excessos passados e aceitar mudar a nossa posição em temas que já só encontram fundamento em argumentos de natureza histórica completamente ultrapassados não é fraqueza. Quando estamos do lado certo de um combate, como estamos, fazê-lo representa coerência e um passo para se abrir novas linhas de pensamento, de ação e de cooperação.

Esta é a “prova de vida” da advocacia, mas, também e sobretudo, como acima referido, do Estado de Direito e da cidadania. Que não falte a força, a coragem, a capacidade de dialogar e de construir pontes a todos para mudar o “final” desta história.

Por fim, uma palavra de parabéns pelos 97 anos da Ordem dos Advogados Portugueses que se cumpriram no início da presente semana e um louvor a todos os advogados que ao longo deste (quase século) a serviram de forma abnegada, séria e competente, a quem simbolicamente dedico este texto.

  • José Costa Pinto
  • Sócio fundador da Costa Pinto

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