Gás de Botija: uma morte assistida
Temos um mercado ineficiente, esgotado, que se mantém fruto da essencialidade de um serviço mas à custa de uma fatura excessiva paga pelo consumidores.
2,6 milhões de famílias em Portugal dependem do gás engarrafado como fonte de energia doméstica, principalmente aquecimento de aguas sanitárias e para a cozinha. É muita gente.
À volta de 50.000 pontos de venda asseguram o abastecimento ao consumidor final. 200 000 garrafas comercializadas por dia. É muita quantidade.
E há muito tempo também que sabemos que o mercado GPL (Gás de Petróleo Liquefeito) é um mercado “desfavorável” para os consumidores.
7 pecados mortais:
- É um produto derivado do petróleo, 100% fóssil. O seu consumo emite gases nefastos para o nosso ambiente.
- O mercado aproxima-se de um oligopólio, com fortes barreiras à entrada.
- O custo do gás engarrafado por unidade de energia (€ por kWh) é, hoje, mais do dobro face à alternativa do Gás natural. Estimamos que os consumidores dependentes do gás engarrafado pagam mais 300 M€ por ano do que as famílias abastecidas por Gás natural. E não é viável economicamente, ou desejável ambientalmente, colocar uma ligação de Gás natural à porta de casa de cada família. Uma fratura social evidente.
- Comercializado em envases – de diferentes capacidades e tipo de material – não deixa de representar uma forma “primária” de distribuição nos dias de hoje. E é um grande aborrecimento ter de transportar, armazenar e instalar as botijas. Questões ligadas a segurança do manuseamento são a somar a estas preocupações.
- A troca de botija devolve 16M€ por ano as companhias por gás que não é possível consumir (fundo da garrafa).
- A distribuição ao consumidor final é atomizada e dispersa (desde supermercados a mercearias) e os elevados preços ditos “livres” sofrem de uma “estranha harmonização”. As diferenças nos preços de venda ao consumidor final são muito pouco expressivas.
- As margens de retalho deste negocio são atípicas (numa garrafa de butano, chegamos aos 60%!). Não são conhecidos muitos setores, maduros, com margens tão elevadas.
Houve algumas tentativas de “remediar” o prejuízo dos consumidores com regulamentação visando facilitar a troca de garrafas (mas com a incompatibilidade de alguns redutores), obrigações de cadastramento e prestação de informação por parte dos operadores num exercício de vigilância dos preços, uma declaração de interesse público das estruturas de armazenamento e transporte numa tentativa de aliciar novos operadores (o que não se verificou!), obrigatoriedade de venda nos postos de abastecimento de combustíveis, até se mudou o regulador do setor (passou para a ERSE) na expectativa de uma dinamização do quadro concorrencial. Mas a verdade é que quase tudo permanece, na prática, muito cristalizado.
Está visto que os problemas não se vão resolver pelo Mercado (concorrência) nem com Regulação. O consumidor dependente do gás engarrafado continua a sofrer.
O que mudou recentemente?
Perante a descida continua dos preços da matéria-prima, em particular desde o início do ano, sem repercussão nos preços finais ao consumidor, o governo determinou, ao abrigo do estado de emergência, a fixação de um regime de preços máximos para o gás engarrafado, no intuito, louvável, de proteger o consumidor, dependente deste serviço público essencial. Os valores fixados estavam alinhados com as nossas próprias estimativas. O problema é que essa proteção só vigorou até ao fim do estado de emergência, na prática cerca de 10 dias, para além de uma prática manifestamente desleal ao ser inflacionada, ou passando a ser cobrada, uma taxa pelo serviço de entrega ao domicilio, numa clara tentativa de compensar a diminuição de preço imposta (quando se impunha confinamento à população).
É nossa opinião que um regime de preços máximos não será uma solução final ou definitiva pois não cria valor para o consumidor. Devemos atacar o problema na sua essência, debatendo a implementação de um plano de substituição do gás engarrafado. A eletrificação é a melhor resposta disponível.
Será um processo gradual que vai demorar, é certo, mas é necessário ter essa visão e ousadia estratégica. Tecnicamente é viável (soluções eficientes disponíveis no mercado e suficiência da rede) e perfeitamente em linha com a proclamada necessidade de transição energética para a nossa economia que culminou no “Roteiro para a Neutralidade carbónica 2050” (RNC). O RNC, compromisso assumido em 2016 e vangloriado como pioneiro a nível mundial, projeta o consumo GPL como residual para o setor residencial mas não define qualquer medida concreta para chegar lá… esta proposta encaixa, não? A mais recente aposta no auto consumo coletivo e o fomento de comunidades de energias renováveis encaixa também que nem uma luva.
Há, contudo, duas dificuldades a ultrapassar:
Primeiro, como financiar esta operação? Segundo as nossas estimativas, o montante total de transformação dos lares portugueses ainda dependentes do gás engarrafado pode atingir 2,6 mil milhões de euros. Fundos nacionais e europeus, existentes (quadro financeiro plurianual 2021-27, fundo de transição justa, fundo ambiental) ou a concretizar (“Green Deal”), podem e devem ser canalizados para esta metamorfose. As produtoras e comercializadoras de energia também podem (e querem!) ser players ativos e participativos. Afinal vão ganhar mais consumo e consumidores.
Segundo, acautelar preventivamente o impacto nos agentes da cadeia de valor que vivem deste negócio. Estamos conscientes do desafio mas, perante uma transição inevitável, o melhor é prepara-la. Vão surgir outras e novas oportunidades de trabalho.
Uma curiosidade (ou nem tanto): na ilha do Corvo, em 2013, a câmara municipal e o governo regional dos Açores quiseram lançar um programa “parecido” embora acabasse por ficar limitado às soluções de aquecimento de aguas sanitárias em 145 casas da ilha, subsistindo ainda hoje o aquecimento da cozinha com botijas.
Na ilha de Porto Santo, o projeto “Porto Santo Sustentável”, parceria entre o Governo Regional da Madeira e a Empresa de Eletricidade da Madeira, apostou na produção renovável descentralizada de eletricidade e na mobilidade elétrica, ficando contudo de fora os consumos domésticos baseados em gases liquefeitos. É o passo que falta para Porto Santo tornar-se verdadeiramente livre dos combustíveis fosseis, como deseja.
Em conclusão, temos um mercado ineficiente, esgotado, que se mantém fruto da essencialidade de um serviço mas à custa de uma fatura excessiva paga pelo consumidores. Por uma questão de sustentabilidade social, económica e ambiental, é imprescindível colocar este debate na agenda politica. Hoje para um futuro melhor.
A DECO PROTESTE está disponível para apoiar e acompanhar decisores, consumidores e empresas nesta mudança. É o nosso contributo.
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