Maria de Fátima Bonifácio foi ao passado, e ficou por lá

A historiadora sugeriu que a observação participante é a única metodologia de investigação razoável. Faz sentido, Maria de Fátima Bonifácio tem viajado até ao Passado – e ficou por lá.

Eu sei que, em resposta a alguns comentários feitos ao meu último artigo, havia dito que o próximo texto abordaria as questões políticas que uma explicação estritamente técnica não abordou. Mas estalou uma polémica envolvendo um artigo de Maria de Fátima Bonifácio, no Público, e pareceu-me que a ADSE podia esperar (apesar de insustentável, deve aguentar mais uns meses e o debate sobre o sector da Saúde vai continuar na ordem do dia).

Em primeiro lugar, e como ponto prévio, deixem-me dizer que, embora gostando muito de Popper, não estou convencida com a sua solução para o Paradoxo da Tolerância. Eu percebo que ser tolerante com os intolerantes possa significar o fim da tolerância. Mas, tal como Rawls, acho que a tolerância também desaparece quando não se tolera os intolerantes. É por isso que se trata de um paradoxo: porque, seja qual for a conclusão, haverá sempre uma contradição lógica.

Abstraindo-me da inconsistência, tendo a ser apologista de dar palco mesmo às ideias disparatadas ou abjectas (o que não significa que um meio de comunicação tenha o dever de dá-lo, porque há um estatuto editorial a respeitar). Damos-lhes palco e depois desmontamo-las. Porque a liberdade de expressão é uma via de dois sentidos: uma pessoa tem a liberdade de exprimir a sua opinião e depois outros têm a liberdade de adjectivar essa opinião e discorrer sobre ela. E assim sucessivamente.

Em segundo lugar, quero referir que eu não sou particularmente entusiasta de quotas. No tiro com arco, quando há vento lateral, não se faz mira ao alvo. É preciso compensar a trajectória. As quotas funcionam segundo esse mesmo princípio: uma discriminação distorce o que seria o resultado natural; por isso, cria-se outra distorção para corrigir a primeira. Tão simples quanto isto. Nada de “farsas igualitaristas”, como escreveu Maria de Fátima Bonifácio. É só a teoria do second best, que notabilizou o economista Richard Lipsey.

Como escrevi a propósito da proposta de incluir nos próximos Censos uma questão sobre a origem étnica, faltam-nos (e vão continuar a faltar, lamentavelmente) dados que nos permitam identificar eventuais desigualdades e discriminações com base na etnia. E assim não sabemos a intensidade do vento, nem a sua direcção, pelo que fica complicado ajustar a pontaria. Quando li “Estas minorias excluídas da Cidade, a sua suposta ou real marginalização”, logo no primeiro parágrafo do artigo, pensei que fosse este o argumento de Maria de Fátima Bonifácio. Mas não.

Vera Gouveia Barros

O motivo pelo qual não sou simpatizante de quotas para mitigar os efeitos de uma discriminação não se prende com a defesa do mérito. Só quem acha que o grupo com direito a quotas é menos competente pode invocar o argumento da meritocracia, que é na teoria absurdo e que tem evidência empírica a contrariá-lo, como expôs Luís Aguiar-Conraria.

O meu receio é que, emendando o resultado, se seja menos empenhado em atacar a raiz do problema. Mas aceito que me digam que esse temor é infundado, que é como ter de tomar um antipirético ao mesmo tempo que se combate a infecção. Tal como Maria de Fátima Bonifácio, eu digo que as mentalidades não se mudam por decreto; só que não nego que os decretos possam ser importantes para mudar mentalidades. É apenas uma questão de preferir “first best”.

No caso concreto das quotas para certos grupos étnicos, sobre as quais perorou Maria de Fátima Bonifácio, há um outro aspecto importante. É que – para usar a alegoria do tiro com arco – nós não conhecemos o vento. Como escrevi a propósito da proposta de incluir nos próximos Censos uma questão sobre a origem étnica, faltam-nos (e vão continuar a faltar, lamentavelmente) dados que nos permitam identificar eventuais desigualdades e discriminações com base na etnia. E assim não sabemos a intensidade do vento, nem a sua direcção, pelo que fica complicado ajustar a pontaria. Quando li “Estas minorias excluídas da Cidade, a sua suposta ou real marginalização”, logo no primeiro parágrafo do artigo, pensei que fosse este o argumento de Maria de Fátima Bonifácio. Mas não.

Maria de Fátima Bonifácio explica-nos que não deve haver quotas para africanos e ciganos porque eles são diferentes. Confesso que fiquei confusa. Também pelo uso de “africanos” quando queria dizer “negros”. Mas sobretudo porque, se um grupo tem características distintas, então ter quotas que assegurem a sua representação na Assembleia da República deve ser questão de princípio e não um meio para resolver um problema de discriminação.

A nossa Constituição determina que os deputados são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos. Os círculos eleitorais são uma forma de quotas. Porque consideramos que Bragança tem questões distintas das de Leiria, queremos assegurar que as várias regiões do país têm assento parlamentar. A lógica para a representação de géneros ou de etnias é a mesma. Por isso, invocar diferença seria uma razão para advogar quotas.

Mas Maria de Fátima Bonifácio esclarece: é que a diferença dos negros e ciganos é uma diferença má, é uma diferença que os torna indignos do nosso segundo órgão de soberania. As palavras não são estas, mas a ideia, sim. Para quem não percebeu – ou fingiu que não percebeu – onde está o racismo do artigo: é aqui que está. E no rol de preconceitos que desfia de seguida para justificar a sua posição.

Aparentemente, segundo Maria de Fátima Bonifácio, essa divisão entre negros e ciganos, de um lado, e a cristandade do outro, decorre do facto de que os primeiros “[não] descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789”. Estou confusa outra vez. É que a primeira frase do primeiro artigo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembleia Constituinte Francesa, diz “os homens nascem e são livres e iguais em direitos”. E, embora sem o adjectivo “universal”, que seria explicitado pela ONU em 1948, aquela declaração já visava a Humanidade no seu todo. Curiosamente, Maria de Fátima Bonifácio até considera que “homem” abarca as mulheres, mas exclui negros e ciganos do conceito. Giro. Aliás, a igualdade era a segunda ideia-chave das três que fizeram o slogan da Revolução Francesa. Portanto, é bem possível que depois de ler o artigo “Podemos? Não, não podemos”, Robespierre fizesse Maria de Fátima Bonifácio perder a cabeça. Literalmente. (Metaforicamente, parece estar já de cabeça perdida.) E, sim, apesar da bonita Declaração, a escravatura em França durou até 1848. Mas isso só atesta a hipocrisia da tal cristandade, não inferioriza quem foi privado de gozar um estatuto de igual. Cristandade que, de resto, para ser fiel à mensagem do seu fundador, não precisava da Revolução Francesa para perceber que todos os Homens têm a mesma dignidade.

Da Catequese, guardo especial memória da Perícope da Adúltera, o episódio em que Jesus salva uma mulher que havia cometido adultério de ser morta apedrejada – no Seu tempo, Ele também era bastante inassimilável. Pareceu-me sempre um bom resumo da verdadeira mensagem cristã, que é de tolerância e de acolhimento, contrária a que se julguem os outros. Mas Maria de Fátima Bonifácio continua nos seus juízos. E tanto quer cavar uma trincheira, que se enterra. Invoca factos que não o são. Faz generalizações absurdas. Não consegue sequer ser coerente, excepto no seu racismo.

O parágrafo sobre os ciganos ilustra bem o viés cognitivo de confirmação. Maria de Fátima Bonifácio diz-nos que observemos “o modo disfuncional como se comportam nos supermercados” e “como desrespeitam as mais elementares regras de civismo que presidem à habitação nos bairros sociais e no espaço público em geral”. Ora, se uma pessoa só consegue reconhecer ciganos quando eles se comportam à margem das regras, é normal que conclua que todos os ciganos se comportam à margem das regras. Pergunto-me se Maria de Fátima Bonifácio identificaria o engenheiro físico Piménio Ferreira como cigano, ao vê-lo no corredor dos iogurtes; ou a actriz Maria Gil, a escolher carne no talho, ela que até é ruiva, como notou Fátima Campos Ferreira, no Prós e Contras sobre racismo. Já Leonor Teles é fácil, porque apesar do cabelo curto encaracolado, partia sapos em estabelecimentos comerciais, no tal vandalismo gitano típico.

Relativamente aos africanos e afro-descendentes, o discurso não melhora. Maria de Fátima Bonifácio aponta-lhes o dedo por odiarem ciganos. Vejam bem que essa me parecia a consequência lógica do parágrafo anterior. E até achei que era uma atitude partilhada com ela. Mas não. O problema é que os africanos são abertamente racistas, “detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos ou “nacionalidades” rivais”. Pois é. Nos anos 90, ali na África dos Balcãs, houve uma violenta guerra entre africanos sérvios, africanos bósnios e africanos croatas. Até tiveram de separar o país. Que era africano. Muito diferente da Irlanda, essa ilha onde a cristandade faz com que todos se adorem.

E como é que Maria de Fátima Bonifácio sabe que os africanos são abertamente racistas? Tem a sorte de ter no seu prédio a trabalhar uma empregada cabo-verdiana. É que os africanos são diferentes de “nós”, mas todos iguais entre si. Portanto, basta conhecer um, saber o que pensa e extrapolar. Ainda bem que os historiadores têm muita diversidade, senão uma pessoa lia o texto de Maria de Fátima Bonifácio e concluía que as pessoas de História são todas preconceituosas.

Felizmente, o antepenúltimo parágrafo veio explicar o artigo. A propósito da recomendação de que se crie um observatório do racismo e da discriminação, pergunta Maria de Fátima Bonifácio “como é que se observa o racismo e a discriminação a partir dos gabinetes almofadados onde se sentariam os observadores?”. E ela própria responde, dizendo que “A única maneira de observar uma matéria tão fugidia e evanescente é frequentar feiras e supermercados baratos, é entrar nos bairros em que nem a polícia se atreve a pôr os pés”.

Ah, pronto, assim já entendo. Esta sequência de disparates foi escrita a partir de idas ao Jumbo. Tem a robustez daquelas conversas de café de pessoas que olham para o seu umbigo, vêem-no redondo e acham que é o mundo. Assim percebo melhor o desconchavo. Embora fique decepcionada. Esperava outra seriedade de uma académica, doutorada em História, investigadora, autora galardoada, intelectual reconhecida. Esperava que uma pessoa com tais pergaminhos entendesse que, sentados a partir de gabinetes almofadados, podemos abrir um computador ligado à internet e procurar dados e estudos que nos descrevem muito mais amplamente a realidade que idas a bairros sociais. É pena que, nessas idas ao supermercado, Maria de Fátima Bonifácio não se tivesse cruzado com um daqueles sacos de pano que dizem “ler prejudica gravemente a ignorância”.

Além de decepcionada, fiquei bastante surpreendida. Absolutamente maravilhada por logo uma historiadora sugerir que a observação participante é a única metodologia de investigação razoável. Mas, enfim, na verdade, isso até faz todo o sentido: para fazer a sua observação participante em História, Maria de Fátima Bonifácio tem viajado até ao Passado – e ficou por lá.

Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.

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