Mil e cem litros

  • Pedro Vaz
  • 3 Dezembro 2020

Não é segredo para ninguém que há já algum tempo defendo a necessidade de revisão de como a gestão de resíduos se organiza no país.

No passado dia 6 de novembro, o Governo colocou em discussão pública um projeto de Decreto-Lei (PDL), que, entre outras, altera, tão profundamente que o substitui, o Regime Geral de Gestão de Resíduos (DL 178/2006, de 5 de setembro, na sua versão em vigor).

Tive já a oportunidade de referir publicamente a forma atabalhoada e apressada como o Governo o fez, dando apenas 15 dias (até dia 20 de novembro último) para a apresentação de contributos a um diploma com mais de 400 páginas que (i) altera mais 60 artigos e adita 7 novos artigos no UNILEX (Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de Dezembro), (ii) cria um novo Regime Geral de Gestão de Resíduos (RGGR), revogando o atual Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de setembro, (iii) cria um novo Regime Jurídico da Deposição de Resíduos em Aterro, (iv) altera o regime jurídico da avaliação de impacte ambiental (RJAIA) e (v) altera disposições relativas ao Fundo Ambiental.

Há quem diga que estas alterações se prendem com a necessidade de transposição, para o ordenamento jurídico nacional, das alterações efetuadas em 2018 a várias Diretivas Comunitárias, antes de Portugal assumir a Presidência da União Europeia no próximo semestre. O problema é que as alterações vão para além de uma simples atualização dos regimes.

Não é segredo para ninguém que há já algum tempo defendo a necessidade de revisão de como a gestão de resíduos se organiza no país. Desde sistemas de gestão em alta que se encontram totalmente desajustados à realidade atual do país, aos desafios que se nos impõem pelas ambiciosas metas europeias, passando pelos modelos de financiamento e organização de toda a política de resíduos urbanos. Tudo vem sendo definido numa manta de retalhos tecida a várias mãos entre o Ministério do Ambiente, a Autoridade Nacional de Resíduos (APA), a Entidade Reguladora, os Sistemas de Gestão multi, inter e municipais e os Sistemas de gestão de fluxos específicos.

Sem grandes dificuldades consegue-se detetar que o PDL opera alterações numa série de regimes em vigor, como são o caso do regime de gestão de fluxos específicos, do regime de gestão de resíduos urbanos, do regime contraordenacional, do regime de licenciamento ambiental e do regime fiscal e, mesmo assim, entende o Governo que avaliar os impactos destas alterações pode ser feito em apenas duas semanas, descurando o debate aprofundado.

Apesar das dificuldades inerentes a tão exigente análise do PDL, no que ao Regime Geral de Gestão de Resíduos (RGGR) proposto diz respeito, haverá duas significativas alterações que dizem respeito ao produto da Taxa de Gestão de Resíduos e à Responsabilidade pela Gestão de Resíduos Urbanos e equiparados, que aprofundarei de seguida.

Um dos princípios basilares da gestão de resíduos é que cabe ao produtor do resíduo a gestão desse mesmo resíduo (n.º 1 do artigo 5.º do RGGR em vigor), estabelecendo-se desde logo a exceção, no n.º 2 desse mesmo artigo, no que aos resíduos urbanos (ou equiparados) cuja produção diária não exceda os 1100 L por produtor, cuja gestão é assegurada pelos municípios, por força de tradição e protegidos constitucionalmente pelos princípios constitucionais da autonomia do poder local, da subsidiariedade e da descentralização. O que tem vindo a ser medianamente respeitado pelo ordenamento jurídico português (veja-se o caso da imposição de instruções vinculativas tarifárias aos municípios através de decisões e regulamentação emitidos pela ERSAR).

O PDL acaba com esta distinção gestionária, o que imporá alterações profundas em vários sistemas de gestão de resíduos urbanos (SGRU), especialmente naqueles onde a produção de resíduos é maior, colocando pressões adicionais aos equilíbrios já frágeis nas operações diárias de recolha e reencaminhamento dos resíduos.

Todos os produtores que excedam essa produção dos 1100 L/dia são hoje considerados grandes produtores de resíduos e são responsáveis pelo resíduo que produzem tendo de recorrer a um Operador de Gestão de Resíduos (OGR) para o efeito, não cabendo, atualmente, aos municípios tal responsabilidade primária.

Para melhor se perceber o que aqui se encontra em causa, com a alteração proposta, usarei o exemplo do município de Lisboa, município com uma produção diária de cerca de 900 t/dia de resíduos e cuja recolha, independentemente do fluxo, está a cargo do município até aos 1100 L/dia por produtor, que a faz em gestão direta.

O município de Lisboa recolhe, pois, o tradicional trifluxo, os biorresíduos e a fração resto e equiparados de todos os produtores até 1100 L/dia, independentemente da sua origem (doméstica ou comercial). Através de regulamentação própria (Regulamento de Gestão de Resíduos, Limpeza e Higiene Urbana de Lisboa, publicado em dezembro de 2018) obriga os produtores que excedam estes limites de produção diária (grandes produtores) a recensear-se junto do próprio município e demonstrar que tem contrato com OGR para a recolha dos mesmos. O município dispõe, ainda, da possibilidade de executar essa tarefa, mediante avaliação e capacidade própria, sobre os quais aplicará tarifa própria diferente da praticada aos demais. Dos mais de mil grandes produtores recenseados ou estimados, o município tem em vigor cerca de 100 contratos deste género, estando os restantes, através de OGR privados, a assegurar a gestão dos seus resíduos conforme estipula o n.º 1 do artigo 5.º do RGGR em vigor.

Admitindo a boa vontade do legislador com as alterações que propõe, a realidade é que o legislador dá a entender desconhecer toda a realidade, pois estas trarão mais problemas que soluções à gestão dos resíduos em municípios da dimensão de Lisboa.

Com o novo diploma desaparece a responsabilidade do produtor de resíduo urbano com mais de 1100 L/dia e recupera-se a defunta Lei n.º 88-A/97, de 27 de julho (lei que regula o acesso da iniciativa privada a determinadas atividades económicas) que na alínea a) do seu n.º 1 do artigo 1.º veda a atividade de recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos em sistemas municipais e multimunicipais, salvo se em concessão. Salvo melhor opinião, não me ocorrem muitas dúvidas que, por exemplo em Lisboa, todas as entidades que têm em vigor contratos com OGR para recolher e encaminhar os seus resíduos passem a estar abrangidos pela recolha municipal assim que o diploma entrar em vigor, independentemente das quantidades que produzem.

Esta situação criará pressões adicionais à recolha de resíduos em Lisboa cuja operação não se encontra dimensionada para tal e trará consequentes alterações nas tarifas a aplicar aos munícipes.

Por outro lado, estabelece-se no PDL um regime de recolha suplementar de resíduos que não se percebe o que significa. Serve para substituir a tarifa aplicada aos grandes produtores atuais? Se sim ao abrigo do quê, uma vez que não existe limitação de quantidades a recolher por parte dos municípios?

O diploma em questão, esquecendo ou ignorando o Decreto-Lei n.º 267/2009, de 29 de setembro, que não revoga nem altera, obriga os municípios a disponibilizarem rede pontos de recolha para os Óleos Alimentares Usados (OAU), independentemente das quantidades e abre portas no n.º 2 do artigo 31.º, para que os municípios também recolham os OAU de estabelecimentos comerciais. O mesmo se podendo dizer quanto aos resíduos perigosos, que não são Resíduos Urbanos.

Também parece estranha a escolha de contabilizar nas metas de preparação para a reutilização e reciclagem e não da prevenção e redução de produção de resíduos, dos hipotéticos biorresíduos que são objeto de compostagem doméstica (n.º 6 do artigo 30.º do PDL).

Não me alongando muito mais, com tantas e tão profundas alterações, das quais uma pequeníssima parte aqui dou nota, causa um grande estranhamento a pressa com que se pretende fazer estas alterações, não dando tempo para discussão séria e ponderada.

  • Pedro Vaz
  • Jurista, com especialização em Direito do Ambiente, Energia e Recursos Naturais

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