
Nacionalidade portuguesa: reforçar critérios ou erguer muros?
No fim de contas, o que está verdadeiramente em jogo não é apenas o acesso a um passaporte, mas sim o modo como queremos definir quem somos enquanto país.
A Lei da Nacionalidade voltou ao centro das atenções – e não é para menos. Nos últimos dias, assistimos a uma verdadeira corrida às Conservatórias de Registo Civil, impulsionada pelas recentes propostas de alteração legislativa. Entre dúvidas, expectativas e alguma confusão, milhares de pessoas procuram garantir e esclarecer o seu direito à nacionalidade portuguesa.
A Proposta de Lei, recentemente apresentada à Assembleia da República, vem alterar a Lei da Nacionalidade para endurecer os critérios para a aquisição da nacionalidade portuguesa e reduzir as situações em que esta é invocada como uma mera “nacionalidade de conveniência”.
Embora o processo legislativo ainda esteja em curso, é fundamental clarificar as principais alterações propostas e compreender os principais desafios e problemáticas envolvidas.
O que se pretende efetivamente alterar?
No que respeita à atribuição da nacionalidade originária, a proposta introduz alterações significativas quanto ao acesso à nacionalidade por filhos de estrangeiros nascidos em território português. Atualmente, esta atribuição pode ocorrer de forma automática, desde que um dos pais resida legalmente em Portugal há pelo menos um ano. Se aprovada, a proposta trará três mudanças significativas:
- Passa a ser exigida uma declaração expressa de vontade por parte do progenitor, deixando de existir uma atribuição automática da nacionalidade;
- O período mínimo de residência legal do progenitor é aumentado para três anos, à data do nascimento da criança;
- A prova da residência legal terá de ser feita exclusivamente por documentos válidos e formais, conferindo maior rigor probatório ao processo.
Ainda no âmbito da atribuição da nacionalidade originária, os netos de cidadãos portugueses passam, com esta proposta, a ter de cumprir novos requisitos. Para além do conhecimento da língua portuguesa, a demonstração de laços de efetiva ligação à comunidade nacional e a inexistência de qualquer ameaça à segurança ou ordem pública (como por exemplo terrorismo ou criminalidade violenta), a proposta introduz quatro novas condições:
- Conhecimento da cultura portuguesa;
- Conhecimento dos direitos e deveres fundamentais associados à nacionalidade portuguesa e da organização política do Estado;
- Declaração solene de adesão aos princípios fundamentais da República Portuguesa;
- Ausência de condenação por crime punível com pena de prisão efetiva, de acordo com a lei portuguesa.
No domínio da aquisição derivada da nacionalidade, a proposta legislativa introduz critérios mais exigentes, particularmente no que respeita ao tempo de residência legal em território nacional. Atualmente, é possível pedir a naturalização após cinco anos de residência legal. Com a nova proposta, este prazo é alargado para sete anos, no caso de cidadãos nacionais de países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e dez anos, para cidadãos de outros países.
Além do alargamento dos prazos, os imigrantes passam a ter de demonstrar os mesmos quatro tópicos identificados para a atribuição de nacionalidade aos netos de cidadãos portugueses.
Aqui chegados, importa perceber como se pretende contabilizar os prazos de residência legal. Atualmente, a legislação em vigor permite que o tempo de residência seja contado desde a data em que foi solicitada a autorização de residência temporária, desde que esta venha a ser deferida. A proposta agora em discussão elimina expressamente essa possibilidade: o tempo de espera até receber o título de residência deixará de ser considerado. Por outras palavras, só após a emissão efetiva do título de residência é que o prazo começará a contar.
Por último, propõe-se a aplicação do novo regime da nacionalidade apenas para o futuro. Não obstante, pretende-se evitar, precisamente, uma “corrida” à entrada de pedidos, pelo que a nova proposta pretende que as novas regras sejam aplicáveis aos pedidos de cidadania por naturalização submetidos após 19 de junho de 2025.
Os objetivos envolvidos e as potenciais problemáticas
Posto isto, parece-me que os motivos subjacentes à proposta não deixam margem para dúvidas. O Governo pretende tornar o acesso à nacionalidade mais exigente, reforçando os critérios de atribuição e aquisição da nacionalidade portuguesa e exigindo uma maior ligação efetiva dos candidatos ao país.
É verdade que as alterações mais sensíveis incidem sobre os mecanismos de aquisição derivada da nacionalidade (através de atos voluntários ou situações específicas ocorridas após o nascimento, como a naturalização). Já na atribuição originária (concedida no momento do nascimento, por efeito direto da lei), a proposta “limita-se” a introduzir exigências complementares que, ainda assim, podem representar barreiras relevantes para determinadas famílias.
Contudo, e apesar dos objetivos legítimos de reforço da ligação à comunidade nacional, é de assinalar algumas potenciais problemáticas. Desde logo, a forma como as alterações são introduzidas levanta sérias questões de segurança jurídica, sobretudo no que diz respeito à sua aplicação no tempo e aos pedidos já submetidos. A proposta quer aplicar o novo regime a todos os pedidos de naturalização feitos após 19 de junho de 2025. Esta mudança, ao surgir de forma repentina, compromete a confiança dos requerentes num sistema legal estável e previsível.
A situação agrava-se quando se considera o papel do próprio Estado no atraso dos processos administrativos. O tempo médio de espera para a emissão de uma autorização de residência tem vindo a aumentar significativamente, com casos em que o deferimento demora mais de dois anos. Com a nova proposta, esse tempo deixa de contar para efeitos de naturalização, o que significa que o período legal exigido — sete ou dez anos, consoante o país de origem — poderá, na prática, estender-se para 13 ou 15 anos.
Penaliza-se, assim, o cidadão por ineficiências do sistema público, criando um paradoxo jurídico e ético: quem cumpre as regras e espera pacientemente pelo reconhecimento da sua situação vê agora o seu percurso reiniciado por uma alteração legislativa abrupta. Esta abordagem não só agrava situações de precariedade documental, como mina a perceção de previsibilidade e estabilidade que deve pautar a relação entre o Estado e os indivíduos que o procuram para viver, trabalhar e contribuir para a sua economia e cultura.
Além disso, questiono até que ponto o endurecimento dos critérios exigidos, sobretudo no que respeita ao tempo de residência e ao grau de conhecimento cultural e político, não acabará por criar um regime demasiado restritivo. Estas barreiras podem afastar pessoas que vivem integrados em Portugal há vários anos e contribuem de forma significativa para a sociedade portuguesa.
É aqui que se coloca o verdadeiro desafio: a nacionalidade portuguesa deve ser um reflexo de pertença e de compromisso, não um privilégio reservado a poucos, mas um direito acessível a quem aqui constrói vida, laços e futuro. É legítimo querer protegê-la, mas é essencial fazê-lo com justiça e equilíbrio. No fim de contas, o que está verdadeiramente em jogo não é apenas o acesso a um passaporte, mas sim o modo como queremos definir quem somos enquanto país.
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