NFTs e o direito de autor: uma nova era da arte digital?
Os NFT começam a levantar sérias questões éticas e jurídicas que se cruzam com o direito de autor, tais como a criação de NFTs sobre obras de domínio público.
Em virtude do desenvolvimento tecnológico, tivemos oportunidade de assistir nos últimos anos a uma génese exponencial de novos ativos económicos e financeiros no panorama da economia digital, muitos dos quais alavancados pela tecnologia blockchain, particularmente as criptomoedas. Alguns destes ativos, porventura mais recentes do ponto de vista mediático, são os Non-Fungible Tokens (NFTs) – em português, “Tokens não fungíveis”.
Os NFTs são ativos criptográficos cuja existência, tal como as criptomoedas, assenta na tecnologia blockchain. As semelhanças terminam aí, no entanto. Contrariamente a moedas ou mesmo outros bens fungíveis, os NFTs são, como o próprio nome indica, ativos infungíveis (i.e., objetivamente insubstituíveis, porquanto a sua natureza única não possibilita que sejam trocados por outros ativos da mesma espécie).
Os NFTs podem representar um vastíssimo tipo de ativos digitais, sendo frequentemente utilizados no domínio das obras (nomeadamente obras de caráter artístico). Arte gráfica, vídeos e músicas são exemplos típicos de obras que podem ser transacionadas enquanto NFTs. Na verdade, existem já transações deste tipo de NFTs que ascendem a valores absolutamente surpreendentes quando consideramos tratar-se de ativos digitais.
Veja-se, a título de mero exemplo, a obra digital “Everydays – The First 5000 Days” do artista Beeple, que foi leiloada por 69 milhões de dólares. A cantora Grimes também vendeu milhares de videogramas sob o formato de NFTs num leilão online por cerca de 6 milhões de dólares. O artista conhecido como 3LAU decidiu marcar o terceiro aniversário do seu álbum Ultraviolet com a venda de vários NFTs, tendo o mais exclusivo sido adquirido por 3,6 milhões de dólares. Num exemplo mais próximo, uma carta Sorare (um jogo de futebol virtual onde se podem adquirir cartas colecionáveis sob a forma de NFT) com a representação do jogador Cristiano Ronaldo foi vendida por 290 mil dólares.
O atrativo destes ativos, que os permite ascender a este tipo de valores, reside na segurança conferida pela tecnologia blockchain, que garante que não são passíveis de replicação e, nessa medida, lhes confere um caráter de absoluta exclusividade que não passa despercebido aos investidores que valorizam essa caraterística.
As obras de arte fixas em suporte tangível, como as esculturas e pinturas, concedem ao seu comprador uma garantia de exclusividade que, até há muito pouco tempo, era impossível de equiparar num ativo digital. Um quadro pode ser copiado, mas o método da sua criação torna uma réplica exata totalmente inviável. Isto porque, contrariamente ao que sucede com as máquinas, os processos de criação humana são influenciados por um número de variáveis cuja vastidão torna impossível a sua réplica. Dois movimentos da mão do artista que segura o pincel sobre a tela, por mais parecidos que sejam, nunca serão verdadeiramente idênticos.
Esta barreira técnica intransponível garante aos investidores que o valor da obra que adquirem não irá depreciar em face de cópias que, por mais requintadas que sejam, nunca serão verdadeiros substitutos daquela. Porém, uma vez transposta para um formato digital, a obra passa a ser passível de cópias exatas. Essa facilidade de cópia, bem como de distribuição, impossibilitou até ao nosso passado recente que um potencial investidor percebesse com segurança se está perante o ficheiro digital que representa a obra original ou uma mera cópia.
Os NFTs eliminam essa insegurança, na medida em que as garantias de autenticidade e unicidade assentam na tecnologia em si. Ainda que cópias exatas da obra digital possam existir, o NFT associado ao ficheiro original nunca poderá ser copiado. Assim, o proprietário e os potenciais investidores saberão sempre qual dos ficheiros digitais representa, verdadeiramente, o original.
É importante frisar que a aquisição de um NFT não corresponde a uma aquisição de direito de autor sobre a obra em causa, mas tão somente sobre uma versão (ou representação) digital única dessa obra. O autor retém os direitos sobre a obra mesmo após a venda do NFT que lhe está associado. Disto resulta que o próprio titular do NFT em questão não pode, em regra, reproduzir ou distribuir a obra, salvo mediante autorização por parte do correspondente autor.
As restrições à utilização do proprietário do NFT poderão, mutatis mutandis, ser equiparadas às limitações a que se encontra sujeito o proprietário de uma obra tangível – nomeadamente no que concerne com a sua comunicação ao público. O proprietário do NFT possui, deste modo, apenas um comprovativo eletrónico extremamente fiável de que é titular de uma representação de determinada obra.
Não obstante, os NFT começam a levantar sérias questões éticas e jurídicas que se cruzam com o direito de autor, tais como a criação de NFTs sobre obras de domínio público ou obras disponibilizadas sob licenças Creative Commons, ou saber-se se a criação de um NFT de uma obra que não pelo próprio autor pode, em determinadas situações, constituir um ato ilícito e com que fundamento.
Por outro lado, a bolha especulativa gerada em torno dos NFTs, em certa medida justificada pela segurança nas transações que a tecnologia veio conceder, poderá eventualmente surpreender pela negativa os investidores incautos. Isto porque, no final do dia, um NFT poderá não passar de um certificado de aquisição de uma cópia de determinada obra aliado a uma sensação de escassez que, apesar de técnica, não deixa de ser artificial.
Sem prejuízo desses riscos, uns mais óbvios que outros, é indubitável que a tecnologia apresenta algum potencial transformador em determinadas indústrias artísticas, em particular quando associada a smart contracts, por permitir aos autores um maior controlo sobre os seus ativos digitais e vias alternativas de financiamento e de relação com os consumidores com características diferentes e por vezes mais atrativas do que as vias tradicionais.
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