Nunca fomos tão educados?
Não tenho formação em Ciências da Educação, mas parece-me de elementar bom senso de pedir aos alunos um pouco mais do que eles se sentem capazes de dar, mas apenas um pouco mais.
Mostram os resultados do Inquérito Social Europeu, recentemente publicados, que nunca o estado da Educação em Portugal esteve tão bem. Nunca, quer dizer, desde 2002, quando os dados começam. E não é o estado da Educação, é a percepção que os portugueses têm dele. E talvez “tão pouco mal” seja mais apropriado, porque um grau de satisfação de 5,1 numa escala 10 não é lá grande coisa.
Uns outros resultados, os das provas de aferição do ensino básico, fizeram um dos temas da semana. E não foram lá muito satisfatórios, também. Erros ortográficos e gramaticais, nomeadamente de pontuação, foram presença assídua. Não surpreende. Quando no próprio Diário da República uma pessoa encontra vírgulas a – qual paralelo 38! – separar tragicamente sujeito de predicado, parece normal que os miúdos os cometam. Ainda mais se nos recordarmos que eles ocorreram igualmente com bastante frequência na Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades, que alguns professores tiveram de realizar.
Continuando a mimetizar os adultos e a replicar os exemplos destes, os nossos alunos revelaram também dificuldades no raciocínio, no estabelecimento de relações entre conceitos e na análise e interpretação de informação. Num país que padece de carência moderada de iodo, que é o segundo na União Europeia com maior percentagem de população entre os 25 e os 64 anos sem ensino secundário e onde pensar é considerada actividade de indigência, não admira.
E não admira também porque, daquilo que conheço – e o meu conhecimento nesta matéria é indirecto –, o nível de exigência em termos absolutos é mais ou menos constante ao longo da escolaridade, o que o torna um absurdo em termos relativos.
Introduzir na Primária (desculpem o recurso a terminologia abandonada) conceitos que requerem uma elevada capacidade de abstracção, que crianças com menos de 10 anos não estão preparadas para compreender, não é ser exigente. É estar a promover a resolução de exercícios que não adquirem qualquer significado, numa mera lógica de mecanização. Sem raciocínio, sem apreensão de conceitos e das suas relações. O contrário do que se devia estar a fazer, portanto.
Quando entrei para o ginásio, fiz uma avaliação para definir um plano de treino. Numa das máquinas, achava que 10 quilos era o máximo que as minhas pernas aguentavam; o exercício foi prescrito com 12,5. Ao fim de uns meses, tinha chegado aos 20. Mas se me tivessem mandado logo levantar 20, nunca teria ultrapassado os 10. Idem, se o instrutor se houvesse resignado que este era o meu limite. Eu não tenho formação em Ciências da Educação, mas parece-me de elementar bom senso que os programas tenham objectivos seguindo este exemplo: pedir aos alunos um pouco mais do que eles se sentem capazes de dar, mas apenas um pouco mais.
Quando se quer que crianças do segundo ano resolvam operações com fracções, elas acabam no oitavo a ler um enunciado que afirma que “no cálculo de uma expressão numérica há um conjunto de tarefas que é necessário executar”. Se é para ensinar Matemática como Pastelaria, mais vale que ponham os miúdos, de facto, a fazer bolos, que lhes serve para mais. Até porque, como já aqui tive oportunidade de defender, as Sophias e as Lolas têm uns algoritmos que as tornam concorrentes difíceis de superar quando se trata de “executar tarefas”.
O facto de os resultados das provas de aferição não me terem apanhado de surpresa não significa que não me deixem apreensiva. Pelo contrário, vieram reforçar os meus receios em matéria de Educação, entendida no seu sentido lato. Receios que não se esgotam em programas curriculares e métodos de avaliação e que saíram reforçados com uma outra notícia, que mereceu menos destaque mediático: há uns quantos jardins-escola onde, por razões logísticas, as crianças não dormem a sesta.
Embora com fama de comer criancinhas ao pequeno-almoço, esteve bem o PCP ao levar à Assembleia da República um projecto de resolução que recomenda ao Governo que estude a possibilidade de introdução da sesta no pré-escolar. Nessa mesma iniciativa, apela-se a que se promova um debate sobre o tema. E eu subscrevo. A sociedade portuguesa precisa de olhar seriamente para este tema. Não propriamente o do sono após o almoço, mas o da sociedade que estamos a criar através do modo como educamos os nossos filhos. Que é assunto não desligado do das condições de trabalho (as de agora e as do futuro, com a crescente robotização), da natalidade e da saúde mental.
A Declaração Universal dos Direitos da Criança estabelece, nos seus vários artigos, que os mais novos têm direito a uma protecção especial que lhe permita crescer e desenvolver-se com boa saúde; à educação, ao recreio e à brincadeira. No seu preâmbulo, considera-se que a Humanidade deve à criança o melhor que tem para dar. E nós não estamos a dar-lhes o nosso melhor para que elas sejam o seu melhor.
Nota: Vera Gouveia Barros escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.
Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.
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