O ataque dos clones: quando os artistas perdem a sua voz

  • Rodrigo Noronha Mourão
  • 15 Julho 2025

Neste panorama em rápida e imprevisível mudança é importante que os artistas conheçam os seus direitos e o valor do seu trabalho, não se deixando aliciar por “dinheiro fácil” que lhes pode custar caro

Numa altura em que se comemoram os 100 anos da Sociedade Portuguesa de Autores, enfrentam-se alguns dos maiores desafios a que os artistas já assistiram na atual Quarta Revolução Industrial, marcada pelo acentuado desenvolvimento e integração de tecnologias de inteligência artificial (IA).

Enquanto advogado e ator de voz, noto que o mercado português da produção de áudio, já de si pequeno e sem grande regulação e proteção legais, enfrenta hoje um forte risco de desaparecimento. Para além de dobrarmos maioritariamente conteúdos para família (séries e filmes e infanto-juvenis), os grandes estúdios, como a Disney, abandonam cada vez mais a localização de conteúdos “menores” para português de Portugal, reservando as dobragens para o chamado conteúdo “premium” (os grandes filmes de animação para cinema). Ao mesmo tempo, enquanto a dobragem de certos conteúdos “independentes” (as séries e filmes de produtoras mais pequenas, cuja dobragem é muitas vezes encomendada diretamente pelos canais portugueses e não pelos estúdios) ainda vai sobrevivendo, os grandes estúdios procuram formas de automatizar a produção de vozes de personagens adicionais e secundárias a nível global, através do treino de modelos de IA, pagando apenas aos atores celebridades (o chamado “star talent”) para gravarem os protagonistas e atraírem bilheteira.

Por cá, assistimos cada vez mais a anúncios que convidam atores (e por vezes até pessoas de fora da área) a irem a estúdio gravar textos durante um par de horas e por “tuta e meia”, sem detalhar a finalidade de utilização dessas gravações. Quando por vezes se refere que as gravações se destinam a treinar modelos de IA, também não se explicita qual a aplicação concreta que poderá ser dada a esses modelos, se as gravações poderão ser vendidas a terceiros, se poderá ser replicado o registo e timbre vocal do ator de voz ou se existe alguma compensação adicional associada. Os artistas correm o risco de, num setor já de si pequeno e concentrado num punhado de dobradores que se estabeleceram na indústria há já várias décadas, matarem logo à nascença quaisquer possibilidades de trabalho futuro, cedendo os direitos de exploração da sua voz para que sejam clones seus a darem vida às personagens que poderiam ser suas, sem que para isso sejam sequer adequadamente pagos pelos rendimentos futuros de que estão a abdicar. Muitos deles nem perceberão que o estão a fazer, focando-se apenas no imediatismo de receber algum dinheiro extra por umas horas de gravação num setor em que as possibilidades de trabalho tendem a escassear.

Os desafios da digitalização da exploração de conteúdos protegidos por direitos de autor preocupam o legislador Europeu, cuja Diretiva dos Direitos de Autor e Direitos Conexos no Mercado Único Digital levou a que o atual Código dos Direitos de Autor passasse a prever no seu artigo 44.º-C a possibilidade de autores, artistas, intérpretes ou executantes, ou os seus representantes, reclamarem uma remuneração adicional, adequada e justa à parte com quem celebraram um contrato de exploração dos seus direitos, sempre que a remuneração inicialmente acordada se revele desproporcionadamente baixa relativamente a todas as receitas relevantes subsequentes, decorrentes da exploração das suas obras ou prestações e tais receitas se revelarem significativamente mais elevadas que aquelas que as partes poderiam estimar no momento da celebração do contrato – a chamada “best-seller clause”.

Empresas como a OpenAI, inclusivamente, já tentaram clonar as vozes de celebridades sem a sua autorização – veja-se o caso de Scarlett Johansson que, no ano passado, alegou que aquela empresa tinha clonado a sua voz para um novo sistema do ChatGPT.

Os artistas – sejam eles atores de voz, locutores, atores do audiovisual, escritores, jornalistas, etc – devem manter um registo atualizado do trabalho que prestam e dos contratos de exploração que assinam. Só assim poderão verificar se as suas prestações artísticas estão a ser utilizadas sem autorização e/ou sem compensação, adequada ou não. Não o fazendo, não só poderão estar a perder dinheiro e possibilidades futuras de trabalho, como poderão sujeitar-se a ações judiciais por parte de outras entidades a quem cederam o direito de exploração da sua voz, textos, etc, por possível violação de contratos de exclusividade ou de outro tipo de licenciamento, para além de danos reputacionais que isso possa causar a empresas que exploram personagens associadas às vozes de alguns desses artistas – imagine-se alguém clonar a voz do ator que interpreta o rato Mickey há décadas, produzindo áudio ofensivo na imagem dessa personagem e passando-o como algo oficial…

Recentemente, tivemos também notícia do suicídio de Sewell Setzer III, um jovem de 14 anos que desenvolveu uma dependência emocional e romântica de um bot de IA criado pelo serviço Character.AI, que imitava a personagem Daenerys Targaryen de “A Guerra dos Tronos”, tal como interpretada pela atriz Emilia Clarke, o mesmo serviço que é acusado por outros atores de clonar a sua voz sem autorização e que nos leva a refletir sobre os danos morais que a população em geral (e não apenas os artistas) possa sofrer com o conteúdo produzido por modelos de IA que utilizam prestações artísticas no seu treino e desenvolvimento.

Atenção especial deve também ser dada pelos artistas aos conteúdos que publicam em redes sociais, principalmente no Facebook e no Instagram, já que empresas como a Meta (dona daquelas redes) fizeram saber que todos os conteúdos públicos (como fotos, vídeos, comentários, likes, etc) dos perfis das suas plataformas poderão ser utilizados para treinar os seus modelos de IA, sendo que, no caso da Meta, foi dada até 27 de maio de 2025 a possibilidade de os utilizadores se oporem a essa utilização. Assim, os artistas devem não só exercer os seus direitos de oposição, mas também ter cuidado com os conteúdos que publicam abertamente.

Neste panorama em rápida e imprevisível mudança, é importante que os artistas conheçam os seus direitos e o valor do seu trabalho, não se deixando aliciar por “dinheiro fácil” que lhes pode custar caro no futuro. Caso contrário, é bom que procurem outro ofício, pois já nem robôs poderão interpretar numa série ou filme de ficção científica – esses já estarão a desempenhar todos os outros papéis, quer o público perceba (ou sequer se importe…) ou não. Como diria o Mestre Yoda na saga “Star Wars”: “The shroud of the dark side has fallen… Begun, the Clone Wars has”.

  • Rodrigo Noronha Mourão
  • Associado da Santiago Mediano e Associados

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