O bónus do Governo no arrendamento

O Programa de Apoio ao Arrendamento funciona em sistema de “tudo ou nada” no benefício fiscal concedido e isso significa beneficiar os que arrendam aos inquilinos com maiores rendimentos.

Uma das manifestações mais visíveis das alterações climáticas é o facto de a silly season ter deixado de estar restrita ao período das férias de Verão; por outro lado, coisas relevantes passaram a acontecer durante estas (para além da tragédia sistemática dos fogos florestais). Exemplo disso foi o veto presidencial ao pacote “Mais Habitação”, no passado dia 21 de Agosto, em plena época balnear. Marcelo Rebelo de Sousa fez da proposta de lei uma das suas leituras de férias e foi num areal algarvio que disse não lhe encontrar problemas com a Constituição, pelo que a decisão basear-se-ia em razões políticas.

Não tenho, obviamente, competência para avaliar se as medidas aprovadas a 19 de Julho são inconstitucionais, até porque, como mostram as decisões dos juízes do Palácio Ratton, aferir se uma norma viola ou não a nossa lei fundamental é tarefa complexa, cheia de nuances e com resultados pouco lineares. No que respeita às questões de política pública, reitero o que escrevi em Fevereiro, uma vez que o texto que foi colocado em consulta pública, o que desta resultou e deu entrada no Parlamento e o enviado para Belém não diferem no essencial. E, no essencial, independentemente de posicionamentos de índole ideológica sobre se quem é proprietário tem ou não o direito de dispor das casas que detém para as manter desocupadas, as medidas propostas são passíveis de várias críticas técnicas e arriscam-se a produzir resultados contrários ao que ambicionam.

Por sua vez, o comunicado da Presidência da República explica a não promulgação com o facto de a execução do pacote não ser suficientemente credível no curto prazo. Ou seja, o problema para Marcelo Rebelo de Sousa não é qualidade das medidas, é que elas não sejam aplicáveis rapidamente. O Presidente da República refere, aliás, que «o arrendamento forçado fica tão limitado e moroso que aparece como emblema meramente simbólico», parecendo lamentar que não seja aplicável a mais casos e com menos garantias para os proprietários, e atribui à complexidade do regime de alojamento – e não ao regime em si – uma expectável ineficácia.

Uma outra questão identificada pelo Presidente da República tem que ver com o processo. Mas não com o facto de a proposta legislativa não ter sido fundamentada em estudos, documentos, pareceres, como sublinhou a Nota de Admissibilidade (na verdade, o próprio adere ao discurso da “crise habitacional”, sem qualquer diagnóstico mais aprofundado); a crítica é feita à «total ausência de acordo de regime ou de mínimo consenso partidário».

Confesso que, atendendo aos pontos que destaquei, fico na dúvida sobre qual o regime de quem Belém desejava acordo. A mesma dificuldade é capaz de ter assaltado o Partido Socialista, que, sem pistas presidenciais sobre alterações a fazer, decidiu que irá submeter novamente o diploma conforme está. Já eu, se, em Fevereiro, levantei várias objecções ao pacote “Mais Habitação”, agora apresento uma ideia de modificação. Não propriamente ao texto vetado, mas antes ao Programa de Apoio ao Arrendamento, anteriormente conhecido como Programa de Arrendamento Acessível.

Nos moldes actuais, o Programa de Apoio ao Arrendamento funciona em sistema de “tudo ou nada” no que respeita ao benefício fiscal concedido: ou se cumprem os requisitos e o senhorio fica isento de IRS/IRC, isto é, paga zero de imposto, ou não se cumprem e não se está no programa. Para se ser abrangido por este, o senhorio tem de cobrar uma renda abaixo de um determinado limite cujo cálculo tem por referência o valor mediano do m2. Tenho insistido nos problemas de selecção adversa que daqui decorrem, pelo facto de o mercado imobiliário ter características especiais que tornam a mediana um mau indicador.

Mas há uma segunda questão, mais perniciosa. O programa exige também que a renda corresponda, para o inquilino, a uma taxa de esforço máxima de 35%. Ora, isto incentiva o senhorio a arrendar a sua casa a famílias com maior rendimento. Senão vejamos. Imagine que determinada pessoa tem uma casa pela qual, atendendo às características da mesma, pode pedir 350 euros. No programa, há duas famílias candidatas, uma tem um rendimento de 1000 euros, a outra de 800. Esta segunda família, se pagar 350 de renda, ficará em sobrecarga, terá uma taxa de esforço de 44%. Para ficar isento de imposto, o senhorio teria de receber desta segunda família 280 euros, mas pode ficar isento na mesma cobrando 350 à família que tem o rendimento maior. Que irá ele fazer?

Para corrigir este problema, proponho que o imposto a pagar pelo senhorio, no âmbito do Programa de Arrendamento Acessível, seja dado pela seguinte fórmula:

Como é que isto funcionaria? Aquele t* é uma taxa de imposto mais baixa que a actual taxa de tributação autónoma. E aparece multiplicada pelo rácio entre o rendimento per capita da família e um valor de referência para esse rendimento. Quanto mais pobre for a família, mais aquela fracção se aproximará de zero. Ou seja, uma família de menor rendimento pode pagar uma renda mais baixa (porque se mantém a condição da taxa de esforço máxima), mas também gera um benefício fiscal superior, de modo a que a renda líquida para o senhorio não diminua. Note-se que a minha proposta é definida com base no rendimento per capita, para beneficiar, por exemplo, as famílias monoparentais, que são daquelas que exibem mais dificuldades no acesso à habitação.

Não avanço com sugestões de números para o rendimento de referência nem para a taxa de imposto, deixando esse exercício para a Assembleia da República, promovendo a discussão entre partidos que o senhor Presidente da República quer. Faço somente o reparo de que esses dois parâmetros podem ser definidos de modo a que a actual condição de recursos que o programa tem se mantenha, isto é, se queremos que o programa só abranja famílias até ao rendimento X é fazer com que ao rendimento X corresponda uma taxa final igual à da tributação autónoma.

Dir-me-ão que esta alteração tornaria a medida mais complicada. É verdade. Mas, olhando para a fórmula da Contribuição Extraordinária sobre apartamentos em alojamento local, diria que a minha proposta ainda pode ser bastante complexificada. Por exemplo, definindo e a taxa de esforço em função de escalões de rendimento, mais baixos para quem ganha menos; ou fazendo depender da duração do contrato, beneficiando quem der mais estabilidade ao inquilino. São múltiplas as hipóteses para juntar deputados dos vários partidos a fazer contas e a chegar a consenso. Perde-se em simplicidade, mas ganha-se em justiça social. E em trabalho de equipa, vá.

Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.

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