
O (des)respeito dos Direitos de Propriedade Intelectual na guerra comercial EUA-China-UE
Os direitos de propriedade intelectual, em vez de serem tratados como promotores de criatividade e inovação, são frequentemente utilizados como armas de negociação ou retaliação política.
Num contexto global em que a economia do conhecimento assume primazia, os direitos de propriedade intelectual (DPI) ocupam um lugar central na promoção da inovação, competitividade e desenvolvimento sustentável. Contudo, a sua instrumentalização crescente no palco geopolítico ameaça minar os alicerces do sistema jurídico internacional que os protege.
As recentes tensões comerciais entre os Estados Unidos, a China e, de forma mais subtil, a União Europeia, demonstram como os DPI deixaram de ser apenas garantias jurídicas e se transformaram em instrumentos estratégicos de poder. A disputa em causa, ilustra, não só o desequilíbrio entre a retórica de proteção dos direitos e a sua efetiva aplicação, mas também revela uma preocupante tendência de enfraquecimento da cooperação multilateral.
Desde 2018, os Estados Unidos têm acusado a China de práticas sistemáticas de violação de patentes, contrafação e imposição de transferências forçadas de tecnologia a empresas estrangeiras como condição para aceder ao seu mercado interno. Estas alegações, reiteradas em 2024 e 2025 pela administração norte-americana — liderada novamente por Donald Trump —, foram acompanhadas de uma política aduaneira agressiva, com tarifas sobre produtos chineses superiores a 100%. O objetivo declarado é claro: forçar reformas estruturais no sistema chinês de proteção da propriedade intelectual e garantir maior proteção para a inovação americana.
Do ponto de vista jurídico, os EUA sustentam que estas práticas são contrárias às obrigações da China no âmbito do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (Acordo TRIPS), da Organização Mundial do Comércio (OMC). De acordo com Washington, o enforcement jurídico chinês continua marcado por ineficácia, falta de transparência e um enviesamento sistemático contra empresas estrangeiras.
Em resposta, a China tem procurado, por um lado, mostrar sinais de aproximação aos padrões internacionais de proteção de DPI. O Plano Nacional de Estratégia de Propriedade Intelectual 2021–2035 apresenta metas ambiciosas, incluindo o fortalecimento dos tribunais especializados, o aumento da proteção judicial e a introdução de indemnizações punitivas. Mais recentemente, a Administração Nacional de Propriedade Intelectual da China (CNIPA) publicou novas orientações para resolução de litígios transfronteiriços.
Todavia, essas medidas surgem acompanhadas de uma postura retaliatória — com o aumento de tarifas sobre produtos americanos e sanções direcionadas a empresas dos EUA — revelando uma estratégia dual: alinhar-se às normas internacionais, mas sem abdicar da alavancagem económica em resposta à pressão externa.
A União Europeia, historicamente defensora do multilateralismo e da estabilidade jurídica, tem procurado manter um equilíbrio delicado. No entanto, o agravamento da tensão global levou Bruxelas a adotar uma posição mais proativa. Em 2023, foi aprovado o Regulamento (UE) 2023/2675 — conhecido como o Instrumento Anti-Coerção — que permite à UE reagir legalmente a medidas comerciais coercivas impostas por países terceiros, incluindo retaliações por violações de DPI.
Paralelamente, empresas europeias, sobretudo dos setores farmacêutico e tecnológico, têm manifestado preocupação com a insegurança jurídica crescente no espaço internacional, sinalizando intenções de relocalização de operações para jurisdições como os EUA, onde percecionam uma proteção mais robusta dos seus ativos intangíveis. Esta perceção, ainda que discutível, levanta questões importantes quanto à atratividade do espaço europeu enquanto ecossistema de inovação.
No plano normativo, a UE dispõe de um quadro jurídico sólido, e toda a legislação existente, tendem a refletir uma abordagem moderna, coerente e digitalmente orientada à uniformização da proteção da propriedade intelectual, sucede porém que a aplicação em cada estado-membro e a eficiência é que já não é tão uniforme, o que leva a uma insegura jurídica, nomeadamente das farmacêuticas e plataformas digitais.
Ainda assim, o que esta disputa global põe em evidência é a debilidade do sistema internacional de DPI quando confrontado com lógicas de poder económico. Os direitos de propriedade intelectual, em vez de serem tratados como promotores de criatividade e inovação, são frequentemente utilizados como armas de negociação ou retaliação política. Este uso estratégico desvirtua o seu propósito e ameaça seriamente o equilíbrio do comércio internacional, ao mesmo tempo que desencoraja o investimento em investigação e desenvolvimento.
Neste cenário, reforçamos a urgência de revitalizar os fóruns multilaterais — como a OMC e a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) — para garantir não apenas a harmonização legislativa, mas sobretudo a aplicação equitativa e eficaz das normas internacionais. Sem uma abordagem global coesa, continuará a prevalecer uma lógica assimétrica que favorece os mais fortes e marginaliza os princípios de justiça, previsibilidade e segurança jurídica que devem nortear a ordem jurídica internacional.
Como advogadas e juristas, que somos, não podemos deixar de alertar para o risco de erosão do valor intrínseco dos direitos de PI. Se continuarem a ser vistos como meras ferramentas de pressão, o resultado será um enfraquecimento generalizado da proteção jurídica, com impactos diretos na inovação, no investimento e na confiança das empresas no sistema internacional.
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