O dever de não concorrência do vendedor de estabelecimento: observações da experiência prática

  • Daniel Bessa de Melo
  • 29 Maio 2024

As pistas deixadas pela doutrina e pela jurisprudência não desmentem o facto de nos debruçarmos sobre um assunto ainda espinhoso, a rogar por soluções legislativas claras.

O negócio de venda de estabelecimento comercial, vulgarmente designado por trespasse, conhece especificidades de grande importância.

Aspeto relevantíssimo deste regime desvenda-se no dever que recai sobre o vendedor (o trespassante) de, durante certo período, se abster diante o comprador (o trespassário) de praticar atos suscetíveis de desviar a clientela do estabelecimento.

Ainda que a doutrina discuta profusamente o fundamento desta obrigação implícita de não concorrência, seduz-nos a tese que a vê como uma exigência do dever de entrega do estabelecimento ao comprador – que seria frustrado caso o vendedor lhe pudesse saquear determinadas qualidades, afetando a sua rentabilidade. O vendedor, socorrendo-se do seu acesso privilegiado à clientela e ao know-how, encontra-se em posição predileta para realizar uma concorrência particularmente danosa para o comprador. Tal atuação é incompatível com a lógica do negócio que entre eles se celebrou: exercendo uma concorrência diferencial, estaria o vendedor a recuperar algo que havia cedido ao comprador.

Um princípio de cautela económica e jurídica deverá advertir as partes da necessidade de aproveitarem o contrato de trespasse para previamente acordarem a extensão temporal e material desta obrigação, circunscrevendo a sua duração e enunciando os atos concretamente proibidos. Não lhe devendo uma obediência cega nem sendo o dever de não concorrência uma imposição legal, as partes podem excluí-lo de todo.

Mas nada estipulando a respeito dela, esta obrigação surge como uma condição contratual implícita, onerando o vendedor independentemente de um acerto de vontades. Serão nestes casos – nos quais as partes omitem qualquer referência à proibição de concorrência – que surgem as dificuldades mais prementes.

Entre elas enuncia-se, em primeiro plano, o problema da determinação do seu período de vigência. Tudo isto dependerá sempre das circunstâncias do caso concreto, mas não nos podemos evadir de diretivas superiores, inscritas tanto na Constituição da República Portuguesa como no Direito Europeu: a preservação de um mercado concorrencial assente no livre-câmbio de bens e serviços. Recusando-se frontalmente uma proibição tanto perene como efémera, a obrigação de não concorrência deverá expandir-se pelo tempo estritamente necessário à consolidação do estabelecimento na esfera do comprador. A legislação italiana, que pode ser manietada como auxílio interpretativo, estabelece que o divieto di concorrenza tem uma duração de cinco anos.

A proibição da prática de atos concorrenciais conhece, ademais, uma delimitação geográfica. O vendedor de um restaurante não pode montar um novo estabelecimento ao fundo da rua, mas nada o impedirá de o fazer noutra localidade. Onde a nova atividade não transgrida o perímetro de atração da clientela do estabelecimento transmitido, o empresário pode desenvolvê-la isento de quaisquer constrangimentos.

Na latitude do tipo de atividades proibidas insere-se não apenas a exploração do mesmo ramo de negócios como a comercialização de produtos e serviços alternativos: seria o caso do vendedor de uma cervejaria abrir ao lado uma loja de vinhos. Ainda que a matéria seja sensível, não se decifrando orientações claras na jurisprudência, é defensável que o vendedor infringe esta proibição de concorrência se assume a gestão de uma sociedade comercial que explore um estabelecimento concorrente.

A preterição do dever de não concorrência concede ao comprador uma série de instrumentos destinados à salvaguarda do seu interesse. Assiste-lhe, desde logo, o direito a reclamar uma indemnização pela perda de volume de negócios decorrente do desvio da clientela – um nexo de causalidade de prova difícil, mas não inverosímil. Independentemente do prejuízo que haja eventualmente sofrido, a conduta do vendedor pode ser suficientemente grave ao ponto de legitimar o comprador a resolver o contrato de trespasse, revertendo a transmissão do estabelecimento.

As pistas deixadas pela doutrina e pela jurisprudência não desmentem o facto de nos debruçarmos sobre um assunto ainda espinhoso, a rogar por soluções legislativas claras. O regime da obrigação implícita de não concorrência é, na sua base, uma construção desenvolvida além dos confins da lei escrita.

De forma a minimizar o risco de litigiosidade, as partes do contrato de trespasse deverão socorrer-se da adequada assessoria jurídica, definindo claramente os limites da atuação (potencialmente) concorrencial do vendedor, a duração desta proibição de concorrência e as consequências da sua infração.

Será preferível para os contraentes empreender este esforço negocial acrescido do que submeterem-se a uma decisão judicial pouco criteriosa, cujo sentido nem os arautos nem os oráculos conseguem antecipar.

  • Daniel Bessa de Melo
  • Associado da Cerejeira Namora, Marinho Falcão

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

O dever de não concorrência do vendedor de estabelecimento: observações da experiência prática

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião