O dinheiro dos outros*

É uma ironia, o excesso de crédito em Portugal agravou a subcapitalização das empresas. Porquê? O dinheiro dos outros nunca tem o mesmo valor.

Na análise que fez das causas da situação da banca, Carlos Costa, o governador do Banco de Portugal, destacou seis factores, todos eles relacionados com o crédito concedido às empresas. O elevado endividamento das empresas, e as suas causas, não têm tido a atenção que merecem na análise da crise da economia portuguesa.

Portugal é um dos países mais endividados do mundo. Para esta situação, contribuíram o Estado, as famílias e as empresas. O Estado tem uma das dívidas mais elevadas do mundo em percentagem do PIB (133%) – o pedido de resgate à troika, a centralidade do défice orçamental na discussão pública, as constantes negociações com a Comissão Europeia e a ansiedade que antecede cada nova avaliação da agência de rating DBRS refletem bem a gravidade da situação.

Também as famílias portuguesas estão entre as que mais se endividaram em todo o mundo (86% do PIB, em 2015), posicionando-se ainda assim a meio da tabela das famílias mais endividadas da OCDE (lidera a Dinamarca com uma dívida correspondente a quase 300% do PIB).

Daquele endividamento das famílias portuguesas, 80% destinou-se à aquisição de habitação, onde as taxas de incumprimento não são, apesar de tudo, muito elevadas – o que justificará a exclusão das famílias, por parte do Governador do BP, das dificuldades actuais da banca.

O elevado endividamento das famílias tem sido associado à sua baixa poupança, a qual se encontra entre as mais baixas do mundo, tendo sido negativa em diversos períodos de 2016. Por esta razão, as famílias portuguesas são por vezes acusadas de ‘viver acima das possibilidades’.

Na verdade, quando comparamos o desempenho das famílias dos países resgatados pela troika, concluímos que as portuguesas foram as únicas que, entre a criação do euro e a crise financeira internacional, tiveram capacidade líquida de financiamento em todos os anos. Isto é, em termos globais, a sua poupança foi suficiente para financiar o seu investimento.

No caso das empresas – como podemos ver na figura –, entre meados da década de 90 e a crise das dívidas soberanas, a sua poupança foi sempre insuficiente para financiar o investimento. As empresas a apresentaram necessidades líquidas de financiamento durante todo aquele período. Esta situação, semelhante à vivida pelas empresas espanholas, contrasta com a situação das empresas gregas e irlandesas, em que a poupança ultrapassou o investimento realizado em todos os anos.

Na segunda metade da década de 90, as necessidades de financiamento das empresas deveram-se mais ao aumento do investimento (que, em 2000, atingiu o valor máximo em percentagem do PIB) do que à queda da sua poupança. Entre a adesão ao euro e a crise financeira internacional, a queda da poupança acentuou-se e é a ela que se devem as elevadas necessidades de financiamento das empresas, que, em 2008, ultrapassaram os 10% do PIB.

Entre 2003 e 2008, a queda da poupança é explicada pelo aumento da distribuição de dividendos e pelo aumento do pagamento de juros, havendo uma grande sobreposição entre as empresas que pagavam muitos dividendos e muitos juros. Ou seja, muitas empresas distribuíram muitos resultados (chegaram a ultrapassar os 10% do PIB) e, simultaneamente, suportavam elevados custos com endividamento.

Poupança, Investimento e Capacidade Líquida de Financiamento das Empresas (% do PIB).
Poupança, Investimento e Capacidade Líquida de Financiamento das Empresas (% do PIB).

De facto, a quebra da poupança das empresas coincidiu com a aceleração do aumento do endividamento. Este supriu as elevadas necessidades de financiamento e colocou as empresas portuguesas, em 2012, entre as mais endividadas do mundo, ultrapassadas apenas, em percentagem do PIB, pelas islandesas e irlandesas.

Num país como Portugal, ainda longe dos níveis médios de rendimento per capita da União Europeia, os investimentos tinham um retorno esperado mais elevado, o que os tornava mais atractivos ou, pelo menos, mitigava o risco percepcionado.

Por outro lado, fazendo parte da zona do euro, num mundo em que o acesso ao crédito se universalizou – e os bancos portugueses desempenharam a sua função de intermediação com grande eficiência – o obstáculo da ‘subcapitalização da maioria dos sectores’, referida num documento, de 1990, do Ministério das Finanças, podia ser ultrapassado.

No entanto, hoje sabemos que essa abundância de capital não teve o retorno esperado. Sabemos que uma parte daquele endividamento não financiou investimento reprodutivo, servindo antes para ‘compensar’ a descida da poupança resultante da distribuição de dividendos ou, como referiu o governador do Banco de Portugal, a aquisição de participações sociais. A dívida das empresas aos bancos é hoje o maior problema dos bancos. Um problema que em grande medida por eles foi criado.

O que é irónico (e dramático em muitos casos), na história do crédito às empresas em Portugal, é que o excesso de capital no lugar de saciar as empresas tenha agravado a sua subcapitalização e seja hoje um dos principais entraves ao investimento.

Há muitas explicações para este resultado, como avançou o governador do Banco de Portugal, mas talvez a principal seja que o dinheiro dos outros nunca tem o mesmo valor.

* Referência ao título do último livro de John Kay.

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