
O gigante dos pés de barro
Se os EUA representam um retrocesso explícito, a União Europeia surpreende pela ambiguidade.
Neste Dia Mundial do Ambiente, a 5 anos de 2030, onde muitas das estratégias e agendas apontam o objetivo de apresentar metas intercalares de sustentabilidade e descarbonização, trago uma reflexão que, ao mesmo tempo, é uma inquietação e um call to action.
Nunca a sustentabilidade ambiental esteve tão próxima de um ponto de inflexão tão perigoso. Apesar de todos os avanços nos últimos 40 anos, assistimos a um momento de profunda incerteza onde líderes globais navegam em direções opostas, colocando em risco décadas de progresso nas políticas ambientais e climáticas.
Na atual tempestade perfeita, a administração Trump consolida uma agenda ambiental devastadora. Com 70% das medidas do polémico “Projeto 2025” já implementadas, os Estados Unidos apresentam novamente a sua retirada do Acordo de Paris e provocam uma contração de 1,5% a 2% no comércio global. E isto não significa apenas um recuo americano – significa que a maior economia histórica emissora de gases de efeito estufa abdica da sua responsabilidade. Sob o lema “Unleashing American Energy”, a administração Trump desmantelou mais de 100 normas climáticas, incluindo padrões de eficiência energética para veículos e eletrodomésticos e cortou 55% do orçamento à Environmental Protection Agency (EPA). A retórica de Trump, que classifica o aquecimento global como “efeito colateral do mundo moderno”, normaliza a ideia de um modelo de crescimento económico com danos e impactos irreversíveis ao planeta.
Mas, se os EUA representam um retrocesso explícito, a União Europeia surpreende pela ambiguidade. Após anos como pioneira, o nosso bloco recua em pilares do Green Deal, como a Corporate Sustainability Reporting Directive (CSRD) e a Corporate Sustainability Due Diligence Directive (CSDDD).
Ou seja, a União Europeia, outrora líder inquestionável de uma agenda verde rumo à neutralidade carbónica, sucumbe às pressões da competitividade, não percebendo nada das orientações do Relatório Draghi e Letta. O pacote “Omnibus” promete economizar €37,5 mil milhões em custos regulatórios até 2029, reduzindo 25% dos encargos administrativos para grandes empresas e 35% para PME, mas não diz quanto isso pode custar no futuro. Sob o manto da “simplificação”, esta capitulação é particularmente preocupante quando o Fórum Económico Mundial continua a apontar as alterações climáticas como um dos maiores riscos globais, assim como investidores no valor de €6,6 mil milhões alertam que enfraquecer as regras de sustentabilidade criará incerteza legal e prejudicará diretamente a competitividade europeia.
A inconsistência mortal dos atuais líderes da França e da Alemanha, mais recentemente expressa pelo Presidente Macron, revela a falta de visão estratégica e política da Europa, demonstrando que andam ao sabor do vento dos gigantes, como cata ventos à procura de uma orientação. Depois de vermos a China a liderar a mobilidade elétrica e a transição digital, de assistirmos ao investimento da produção de componentes para a energia renovável, de vermos que a “moeda de troca” de Trump para a Paz na Ucrânia é a garantia de exploração das Terras Raras e vermos a preocupação com a diminuição da dependência de todos os países com as matérias-primas críticas, acabamos por ver a Europa a tremer com os seus pés de barro, incapaz de integrar a competitividade, a reindustrialização e a exploração de matérias-primas, com a neutralidade climática, as exigências ambientais, a sua monitorização e o investimento no capital natural e na conservação da natureza. A contradição chega ao absurdo de, em fevereiro de 2025, a UE lançar um portal para “sugestões de desregulamentação”, priorizando interesses corporativos sobre metas climáticas. Esta falta de equilíbrio e de bom senso leva-nos a uma esquizofrenia gritante, com posições cada vez mais extremas de algumas franjas da sociedade.
Ironicamente, é o próprio Relatório Draghi que desmonta o falso dilema entre sustentabilidade e competitividade. Mario Draghi é cristalino: a Europa precisa de €750-800 mil milhões anuais para manter a competitividade, sendo €500 mil milhões destinados especificamente à descarbonização entre 2025-2040. O relatório demonstra que a sustentabilidade não é obstáculo à competitividade – é a sua condição. A incoerência dos líderes globais é evidente. Trump promete “domínio energético” através de combustíveis fósseis, enquanto a UE sacrifica o ESG em nome da competitividade. Ambos ignoram que a sustentabilidade não é um sobrecusto, mas um motor de inovação, onde as empresas com práticas ESG sólidas apresentam ROI (return on investment) 4,8% superiores à média do mercado.
Draghi revela ainda um déficit de 270 mil milhões de euros em investigação e desenvolvimento face aos Estados Unidos, sublinhando que a Europa só manterá relevância global se liderar a transição verde. Já Enrico Letta critica a fragmentação regulatória que prejudica a UE frente a EUA e China, defendendo investimentos maciços em infraestruturas verdes (500 mil milhões de euros/ano até 2040 para descarbonização) e uma “quinta liberdade” baseada em inovação e ciência. Contudo, os decisores políticos parecem ignorar estas evidências, preferindo o facilitismo dos recuos regulamentares, em vez da sua integração e otimização.
Com o desinvestimento na ciência esta crise tende ainda agravar-se. Nos EUA, o orçamento na ciência sofreu reduções de 12% para este ano 2025, forçando universidades a substituírem investigação por consultoria low cost para sobreviver. Na UE, o programa Horizon Europe perdeu 130 milhões de euros em 2025, comprometendo projetos críticos em energias renováveis.
Este cenário cria um ciclo vicioso. Sem financiamento, os centros de investigação abandonam projetos de longo prazo, para se focarem em projetos comerciais de receita imediata, alguns deles chamados de investigação aplicada, pagos pelos impostos de todos. O resultado é um vácuo de conhecimento, com impactos só visíveis nas próximas décadas.
Assim, o desinvestimento na ciência completa este quadro sombrio de incerteza. Portugal ilustra esta tragédia com um orçamento da FCT, para 2025, de 607 milhões de euros, menos 68 milhões do que em 2024, sendo o valor mais baixo desde 2018. Esta redução deve-se, em parte, à diminuição dos fundos europeus (114 milhões, menos 29 milhões que em 2024) e à ausência de operações extraorçamentais (menos 65 milhões face a 2024). Esta regressão expõe uma realidade cruel: enquanto enfrentamos a maior crise existencial da humanidade, reduzimos o investimento na produção de conhecimento necessário para a resolver.
As universidades, outrora centros de excelência na produção de conhecimento, transformaram-se em prestadoras de serviços. Esta metamorfose não apenas compromete a qualidade da investigação, como priva a sociedade dos conhecimentos fundamentais para enfrentar as alterações climáticas.
A solução exige coragem política. É urgente reforçar o investimento público na ciência e reinstaurar regulamentações claras.
A sustentabilidade não é uma escolha política – é uma necessidade económica. As empresas que abraçarem esta transição criarão vantagens competitivas duradouras, enquanto as que resistirem enfrentarão custos crescentes e tornar-se-ão irrelevantes no seu setor.
Neste Dia Mundial do Ambiente, a mensagem é clara, a liderança política pode falhar, mas a física e a economia não mentem. A transição verde é inevitável. A única questão é se será liderada com visão estratégica ou imposta por crises sucessivas.
Nessas crises, revelar-se-á o Gigante dos Pés de Barro. E espero sinceramente que não seja a Europa.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
O gigante dos pés de barro
{{ noCommentsLabel }}